quinta-feira, 3 de setembro de 2009

A espera pelo trem

............Quando éramos mais jovens, meus amigos e eu tínhamos, além de uma grande amizade, um senso crítico que nos tornava peculiar. Não posso ser falso modesto aqui e digo a verdade quando falo que nossa opinião era de valor, portanto tínhamos influência nas rodas sociais.
- Fantasmas, esses coitados não passam de fantasmas.
............Augusto era o que mais gostava de citar essa frase, denominávamos certas pessoas de fantasmas. Eram aquelas que em nossa opinião eram sem significado, que passam pela vida e no final não fizeram nada de diferente ou que realmente tivesse alguma importância. Mas isso foi há muito tempo atrás, onde tínhamos inocência, confiança e coragem.
- Coisas passageiras da adolescência. – digo suspirando fundo.
............O céu está opaco e com nuvens pesadas, acho que vai chover. Não gosto muito de chuva, mas com este calor de hoje vejo que é necessário, tomo mais um gole do refrigerante gelado e olho novamente o relógio.
- O trem passa que horas? – pergunto no guichê, descobrindo que será em prováveis vinte minutos.
............Sento-me em outro banco mais próximo da linha, observo a trilha por onde o trem passará, está velha e gasta, mas isso não será problema. Fecho os olhos e coloco a cabeça para trás, sinto meus ombros tensos, não entendo porque ficar tenso logo agora quando estou deixando tudo para trás.
............Sempre fui assim, rápido em tomar decisões importantes e nunca me acanhei com mudanças, não me acanho com nada. Desde cedo notei que tinha agilidade para aprender as coisas, além de conversar bastante e isso junto a meu carisma me renderam bons lucros.
............Comecei a trabalhar bem cedo, distribuindo anúncios. Já de início trabalhava para duas empresas diferentes, não porque gostava do trabalho, mas porque trabalhar para duas empresas, apesar de concorrentes, era lucrativo. Tudo bem que não era algo muito ético, mas até então não era proibido. Era um trabalho desgastante, pois ficar exposto ao sol era cansativo, mas sempre o completava rapidamente, fazer esse serviço depois que se pega o jeito era fácil, distribuía um pouco para os motoristas, colocava outros nos painéis de carros estacionados, jogava um pouco pelo chão aqui e ali, quanto ao restante era queimado.
............Logo fui chamado para trabalhar dentro de uma das empresas, o gerente me achava comunicativo. Minha área era de captação de clientes e também logo aprendi a ganhar um pouco por fora fazendo certos agrados para clientes fecharem negócio, manipular orçamentos era muito fácil.
- Quantas horas? – me pergunta uma senhora ao lado.
- Falta dez para as sete. – respondi procurando ser simpático, pelo menos agora.
- Você também vai embarcar no próximo trem?
............A pergunta me fez pensar em qual resposta seria mais adequada, se eu já tivesse qualquer resposta.
- Estou esperando por ele – disse sem mentir.
............Aquela senhora me fez lembrar de quando vendia seguros, outra época fácil, como podiam ser bobos esses idosos. Foi assim durante algum tempo para mim, vários empregos pequenos, porém lucrativos.
............Mudava de emprego sempre para outro melhor e fiz isso até chegar em um cargo na prefeitura da minha cidade, logicamente apadrinhado. Não poderia estar em um lugar melhor, mas a mordomia logo acabou quando passamos por uma suspeita de desvio de dinheiro público, eu sabia que aquela investigação não ia acabar bem, isso é óbvio em quase todas as repartições públicas, enquanto os outros se agarravam com unhas e dentes a seus cargos e se defendiam de qualquer acusação sem base sólida, eu fiz minhas malas e me mudei.
............O que posso dizer é que senti falta da comodidade que havia por lá, mas em cidade menor coisas podem se tornar muito fáceis ou totalmente impossíveis, tudo circula rápido demais. Tornei-me a ovelha negra da família, mas isso realmente não me importava já que tudo que consegui foi por mim mesmo, sem ajuda de qualquer pessoa. Quanto aos amigos não me lembro de restar algum, foram se perdendo ao longo do caminho, na verdade não sei se amizade verdadeira existiu em algum momento.
- Calma meu bem, calma – vejo uma mãe falar ao longe enquanto nina um bebê que chora insistentemente.
............Lembro de Valéria e uma vontade de saber se nossa criança está bem me invade. Será que é menino ou menina? Procuro um cartão nos bolsos, agora será uma boa hora para refazer contato e além do mais, não tenho nada a perder.
- Alô? – atende uma voz masculina.
............Sinto meu corpo estremecer. Será ele o novo pai? Já não sei mais se quero falar com ela ou saber de alguma coisa.
- Alô?! – ele insiste.
- Gostaria de falar com a Valéria.
- Quem fala?
- Um amigo
............Silêncio.
- A Valéria não se encontra, foi levar a Isa na natação.
- Isa?
- Isso, a filha da Valéria.
- Ela já faz natação?
- Posso saber seu nome? Eu conheço os amigos de minha esposa e eles não ligam interessados em nossa filha.
............Desligo. “nossa filha”, “minha esposa”.
............Meu estômago dói, sujeitinho cretino. A filha é minha, que história era essa de “nossa”. Retiro o telefone do gancho e começo a discar o número novamente, paro faltando os últimos dois dígitos.
- A quem estou enganando? – digo a mim mesmo sabendo do papel ridículo ao qual estou me sujeitando.
............Valéria era minha ex-noiva, namoramos durante muito tempo. Ela não concordava com os serviços extras que eu fazia, dizia que era coisa desonesta, mas como sempre afirmei o mundo é feito de contatos e para tudo que se possa imaginar eu tinha algum contato e acabava lucrando de alguma forma, vendas de carros, casas e até empréstimos de dinheiro. Não, não cheguei a ser agiota, pensei no assunto, mas isso não estava nos meus planos, não naquele momento. Para mim não havia nada de desonesto nisso, eram favores trocados.
............Quando decidimos ficar noivos, consegui um cargo de gerência como corretor de imóveis, no qual obtive boas vendas e assim logo compramos nosso próprio apartamento. Paralelo a isso continuava com meus contatos na garagem e revenda de alguns produtos que conseguia comprando de um outro amigo, em suma se tratava de artigos eletrônicos.
............Meus problemas com a Valéria começaram quando meus negócios com a garagem ficaram mais estreitos. Ela me controlada e queria saber de tudo, como sabia que ela não concordava com o assunto escondi que estávamos fazendo uma manipulação de documentos, não sabia se os carros que nos chegavam eram contrabandeados e na verdade não me importava.
............Três meses depois Valéria descobriu que estava grávida, não nos casamos oficialmente, mas começamos a morar juntos. Fizemos uma reunião formal com os amigos e família dela, meus convidados eram somente algumas pessoas da Imobiliária. Nunca tive vontade de ser pai, mas aconteceu e o jeito era encarar o fato, estava focado em meu futuro financeiro e não queria que nada atrapalhasse.
............Dou um sorriso amargo para o nada quando me lembro de tudo que aconteceu nesta época.
............Acontece que este futuro que eu tanto almejada foi comprometido quando três investigadores descobriram nosso esquema na garagem, para minha sorte eles se acalmaram com uma certa quantia de dinheiro, para meu azar isso não parou.
............Logo estava sendo submetido a chantagens e grandes extorsões, comecei a receber visitas no meu trabalho e também em casa. Quando vi que o assunto estava no limite, tentei deixar o negócio dos carros e foi quando eles ameaçaram a mim e Valéria. Logicamente ela não sabia de nada e sendo assim enquanto de um lado sofria pressão dos policiais, do outro era a própria Valéria que tornava os minutos livres do restante do meu dia em um inferno. Todos os dias eu ouvia centenas de reclamações, além de me cobrar sobre visitas ao médico, o mobiliário do quarto e até as fraldas do bebê. Não suportava mais a situação, em duas semanas minhas coisas já estavam em outra cidade.
............A Valéria foi assunto fácil, mas me livrar dos policiais me deu um pouco de trabalho. Tive que recomeçar do zero, meu dinheiro era pouco e por um tempo vivi na espreita. Não digo que foi difícil, mas sim um tanto quanto cansativo.
............Alguns anos se passaram e me restabeleci, agora não tinha nada para atrapalhar e me prender. Sem parentes, sem esposa, sem chefe, era dono de minhas atitudes enfim. Comecei a observar as pessoas, todas tão contentes com suas companhias, com seus amigos e até com cachorros.
............Sinceramente me irritava ver alguém passeando feliz ao puxar pela coleira um bicho que tenta correr desesperadamente. Aliás, não sei por que todas as coisas ultimamente me irritavam, festas dos vizinhos, happy hour no trabalho, até os negócios. De repente as coisas ficaram fora dos trilhos, não tinha foco.
- Estou cansado, tão cansado – senti todas as veias do meu corpo circulando um sangue velho.
............Foi então quando acordei nesta manhã que tomei minha decisão, vi que não havia nada de importante onde estava e não tinha motivos para continuar aqui. Decidi não ir ao trabalho e nem mais fechar algum negócio. Vesti uma camisa amarrotada que usei no dia anterior, tranquei a casa e coloquei a chave escondida na caixa de correios, como o de costume. Malas seriam desnecessárias, só a carteira e o meu casaco preferido.
............Se o funcionário estiver certo, o trem deve estar para chegar, mas não vejo sinal dele. Olho para os trilhos enquanto visto meu casaco, levanto e jogo a garrafa vazia no lixo. As poucas pessoas que estão na plataforma se agitam, vejo a luz do trem ao longe. Encaminho-me novamente para onde estava, esfrego as mãos e sinto o coração acelerado.
............Foi só então que percebi, era eu o fantasma.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

O reflexo velado de Emília

............Chegou suada devido à intensidade dos exercícios e meteu-se no banho, cheia de seus sais e óleos. Lavou os cabelos com seus produtos artesanais, deixando o condicionador por exatos três minutos após intensa massagem nas madeixas, para o corpo tinha três tipos de sabonetes, um para cada região específica. Todas as manhãs após os exercícios, fazia essa seqüência antes de ficar imersa por quinze minutos em seus sais relaxantes. Ao término, passou o óleo pelo corpo e se enrolou em um roupão.
............No quarto, penteou os cabelos e passou uma loção nas mechas e outra nas pontas, secou-o. Olhou-se de perto no espelho e refez o desenho da sobrancelha, constatou que a pele necessitava de algumas correções, havia manchas, pequenas, mas haviam. Olhou as mãos que também tinham leves pintas e parou nas unhas, no momento não poderia agendar uma esteticista, mas uma manicure era garantido, ligou e agendou um horário.
............Anotou algumas coisas em sua agenda e verificou alguns documentos do pen drive antes de sair, enquanto clicava rapidamente no computador tocaram a campainha.
Dois homens carregavam um imenso pacote, embrulhado em papel de ceda cor-de-rosa e com fitilhos vermelhos.
- Vocês devem estar enganados.
............Conferiram a nota e o endereço, conferiram o nome, sim era para ela.
- Tem um bilhete aqui atrás. – disse um dos rapazes.
............Colado com fita adesiva havia um cartão, Emília retirou machucando um pouco o papel onde estava a fita, abriu o envelope.
- “Emilinha, achei-o perfeito para você. Beijos, Tia Adelaide”.
............Os homens colocaram o embrulho na sala enquanto a olhavam de rabo de olho, ela já estava arrependida de ter aberto a porta só de roupão, deu-lhes uma pequena gorjeta e fechou rápido a porta, girando três vezes a chave.
............Era um pacote pouco maior que sua altura, um tanto quanto esgalgado, tocou-lhe, era firme e plano a não ser pelos extremos onde tinham leves relevos. Desenlaçou o fitilho, retirou aos poucos as quatro camadas de papéis de ceda, quando a última desceu-lhe a mão viu-se no seu presente, era um espelho.
............Até onde entendia deduziu que era algo parecido com um espelho veneziano, estava em uma moldura de madeira trabalhada. Os relevos mostravam formas de cachos e flores, as quatro pontas eram protuberantes de forma arredondada como a se desenhar um mini-labirinto, a cor da pintura era de um verde bem claro, não dava para saber se a cor apagada era intencional ou se era ação do tempo, havia alguns arranhões e pequenos buracos feitos por cupins.
- Só mesmo Tia Adelaide para mandar um presente desses.
............Adelaide era uma grande amiga de sua mãe Elza, só não se tornou sua madrinha pelo protesto de Cândida, irmã caçula de sua mãe. Ela, Adelaide, era desses tipos ligados no cosmos, se guiava pela astrologia e jogava tarô, às vezes gostava de consultar os búzios e agora estava estudando numerologia. Era ligada a tudo que fosse esotérico, não tinha uma religião definida, mas mesclava sua fé com um pouco de cada crença.
............Olhou para o relógio e já estava atrasada, foi ao quarto e trocou-se. Deixou o espelho onde estava, no meio da sala, o colocaria em outro lugar mais tarde. Em pleno início de manhã, o consultório fervilhava, conferiu a agenda da endocrinologista e começou a recepcionar os pacientes.
- Por aqui Angélica – disse dirigindo a moça a uma sala, onde anotaria suas medidas e peso.
............Enquanto a moça tirava a roupa, ela não pode deixar de reparar nas camadas de gordura excessivamente grandes que saiam de toda sua região torácica, bem como de suas costas e braços. A pele indiscutivelmente flácida estava repleta de imperfeições como celulites e manchas, ao olhar grandes traços que lembravam queimaduras, Emília se arrepiou, nunca tinha visto estrias tão grossas. Olhou de relance para seu próprio corpo, nunca chegaria aquele ponto e apesar de não haver uma ínfima gordura decidiu que dobraria o tempo na academia.
............Encaminhou a paciente para a sala da doutora.
- Essa Angélica é um amor de pessoa, nunca vi alguém tão simpática – comentou a recepcionista.
- Já provou dos pães de mel que ela faz? Uma delícia. – disse a outra secretária voltando-se para Emília, que deu um meio sorriso, só se lembrava dos braços gordos e moles, sentiu repulsa de pães de mel.
............Após o expediente foi ao mercado, para as compras. Levou cereais, legumes, verduras, comprou leite integral, frutas e linhaça para seus shakes matinais, acrescentou também alguns frios, massas frescas e vinhos, controlando adequadamente podia se dar ao luxo de escapulidas.
............Chegou em casa já exausta, logo na entrada retirou os sapatos e foi com os pacotes para a cozinha. Da mesa, pode ver o espelho. Tinha se esquecido completamente dele, normalmente o chamaria de trambolho, mas tinha algo nele que a atraia.
- Dessa vez você acertou Tia Adelaide.
............Interfonou e solicitou ajuda da portaria, logo subiu o síndico acompanhado de mais um rapaz do andar debaixo. Colocaram o espelho no quarto e saíram depois de tomar um café. Agora, sozinha na cozinha Emília bebia um pouco de vinho enquanto retirava as compras e as colocava no armário e geladeira, ela não fazia refeições no período noturno, mas estava faminta e por isso cortou algumas fatias de queijo. Pensou no espelho, foi ao quarto com a taça na mão e um pedaço de queijo na boca. Passou a mão por ele contemplando-o, achou-o mais bonito que antes, interessante, realmente parecia muito melhor do que quando ela o recebeu.
............Modificou um pouco a posição, o colocou na diagonal da cama rente ao pé esquerdo, de maneira que ele ficou de costas para a porta. Observou que o espelho capturava de algum modo quase todo o quarto, sentiu-se um pouco vaidosa e arrumou os cabelos, logo depois relaxou embaixo de uma água morna.
............A janela estava aberta e a cortina dançava. Ela estava deitada na cama e seu corpo suava, transpirava a ponto de seus cabelos aderirem ao pescoço, abriu os olhos e sonolenta tentou retirar os fios, sentia-se sufocada. O lençol se embaraçava em seu corpo, tentou descobrir os pés e não conseguiu, a medida que o estado de torpor passou ela foi ficando alerta e percebeu que quanto mais esforço fazia mais o lençol se enroscava, a pressão que sentia estava agora em ambas pernas e subia para o quadril, sentiu os pés como se estivessem sendo compactados e a barriga contraia-se rapidamente, logo os braços foram envolvidos e definitivamente não tinha mais recursos para se livrar, começou a tentar se debater e sentiu todo seu corpo gelar quando viu uma cena idêntica ao seu lado, levou alguns segundos até tomar consciência de que era o espelho. Na imagem ela estava incapacitada de qualquer movimento devido a compressão, já estava ficando insuportável, sentiu uma pressão única por todo o corpo, tão forte que teve a sensação de seus ossos começarem a esmagar e a dor aguda a fez sentir falta de ar, tentou gritar mas o lençol subiu tão delicado quanto manso, cobrindo-a por completo.
............Acordou dando tapas no ar, com um pulo ficou em pé na cama e tirando o cabelo dos olhos respirava apressada, olhou o lençol que agora estava no chão, o espelho refletia a janela do quarto fechada. A medida em que se convenceu de que foi um pesadelo, acalmou-se e sentou. Cobriu-se novamente e virou para o lado contrário do espelho, olhar para ele seria reviver o sonho.
............Despertou trinta minutos antes do normal, arrumou-se com um coque no alto da cabeça e comeu duas fatias de melão. Enquanto colocava o vestido rosa chá, aproximou-se do espelho, notou que estava com profundas olheiras e a pele parecia sem viço, culpou a noite mal dormida. Seu olhar deslizou do reflexo para o espelho em si, aproximou-se bem enquanto subia e descia os dedos pela moldura.
- Podia jurar que vi estragos feitos por cupins aqui. - mas logo esqueceu do assunto, se encaminhado para o serviço.
............Era sexta-feira e o dia começou mais agitado que o de costume, no consultório sempre era assim nas segundas e nas sextas. Início de semana era quando todos prometiam iniciar mudanças e já no final da mesma era quando esperavam algum milagre, como se isso fosse possível. Saiu do trabalho as pressas, a menos de três horas teria um coquetel para ir e ela ainda teria que passar na loja para buscar o vestido que havia encomendado, a loja fecharia em breve, por isso teve que apressar-se.
............Tomou um banho rápido e fez uma maquiagem marcante, retirou o vestido e conferiu se estava livre de marcas, era lindo, cortou a etiqueta. O vestido era verde musgo em cetim e descia um pouco abaixo dos joelhos, as mangas curtas eram levemente plissadas e o decote descia em um V profundo. Colocou os pés em um scarpin de salto finíssimo e bico levemente arredondado, o único acessório a usar foram os brincos de brilhantes. Estava com uma discrição disfarçada, que ao final denunciava pura sensualidade.
- Perfeito – disse a si mesma enquanto conferia seu visual. Voltou o pensamento para seu objetivo, uma pessoa que estaria no evento.
............Ela tinha feito muitos contatos para conseguir o convite para esta noite, lá estariam presentes grandes empresários, um especificamente de uma renomada empresa onde ela desejava uma vaga na área de relações exteriores, o ramo que ela verdadeiramente gostaria de seguir. Emília tinha formação recente, mas não havia ainda ingressado na área, teria oportunidade de fazer muitos contatos naquela noite.
............Ao virar-se para pegar a carteira deparou com o espelho refletindo sua imagem sentada na cama, vestida da mesma forma mas com os cabelos em desalinho e maquiagem borrada. O grito ficou preso na garganta e a visão durou menos de meio segundo, pois ao agitar-se com o espanto derrubou o frasco de perfume, pegou-o e ergueu-se vendo no espelho sua expressão de pavor enquando abraçava o frasco, movimentou se para o lado e levantou um dos braços, a imagem a acompanhava. Desde a noite anterior quando teve o pesadelo, tinha ficado impressionada com o espelho, deduziu que era isso, mas no fundo tinha certeza do que vira.
- Será que tenho mesmo? – perguntou a si no espelho.
............Resolveu ligar para Adelaide, aquele presente começava a incomodar, estava ficando estranho ver a si mesma demasiadamente. A chamada não foi atendida, tentaria novamente mais tarde.
............Durante o coquetel tudo ocorreu melhor que imaginava, ela e sua colega circulavam pelo local, enquanto conseguiam a atenção de todos. Não foi nada difícil estabelecer contato com o empresário em questão, o famoso presidente ficou encantado com sua simpatia, bem como sua cintura fina e decote atrevido.
............Voltou para casa satisfeita, se tudo ocorresse bem, logo estava livre daquele consultório com seus pacientes asquerosos. Sentou-se no sofá, estava levemente embriagada e adormeceu recostada nas almofadas.
............Acordou com a boca seca e cabeça pesada, sentiu um leve desconforto nas costas. Fez um suco de laranja, sem açúcar e com várias pedras de gelo, tomou uma aspirina. O apartamento estava abafado, e abriu a porta bem como as janelas, para circular o ar. Ao abrir a janela do quarto, viu-se no espelho e se estranhou. O cabelo estava seco e sem brilho, notou alguns fios brancos e lágrimas quase brotaram em seus olhos.
- Meus olhos!
............Notou marcas de expressão no canto dos olhos, as quais ela tinha certeza que não estavam ali. Tocou no espelho, as rugas em seu reflexo pareciam mais acentuadas, sentiu sua mão esquentar, somente uma leve impressão e quando veio a certeza, tirou-a rapidamente e notou sua palma vermelha. A cabeça latejava, sentiu-se nauseada e logo o estomago rejeitou o suco que ela havia tomado, após um banho frio colocou uma camisola fina e parou na porta, gostaria de ter tido outra reação a não ser ficar parada. Fitou o espelho com atenção e teve certeza que ele mudara, estava sem arranhões e seu verde não estava mais opaco, tinha ganhado vida.
............Tomou mais analgésicos e tentou mais uma vez falar com Adelaide, novamente o telefone não atendeu e ela resolveu deixar um recado na caixa de mensagens. Ficou encolhida na cama com o telefone nas mãos, seu corpo estava amolecido e seus olhos pesados.
............A janela estava aberta e a cortina dançava. Ela estava deitada na cama e seu corpo transpirava fazendo seus cabelos aderirem ao pescoço, retirou com dificuldade os fios. O lençol se embaraçava em seu corpo, tentou descobrir os pés e não conseguiu, sentia-se sufocada, percebeu que quanto mais esforço fazia mais o lençol se enroscava, a pressão que estava nas pernas, subia para o quadril e sentiu os pés e barriga sendo contraídos rapidamente, tentou se debater em vão. Olhou para o lado, a cena estava no espelho, outro pesadelo. Olhava para o espelho e agora o que chamava atenção não era o reflexo e sim o espelho, estava em perfeito estado e o verde estava tão brilhoso que sua vista turvou.
- É só um pesadelo, é só um pesadelo - repetia a si mesma em desespero.
............Logo os braços foram envolvidos e definitivamente não tinha mais recursos para se livrar, a pressão era muito forte e estava insuportável, teve a sensação de seus ossos começarem a esmagar e a dor aguda a fez sentir falta de ar, tentou gritar mas o lençol subiu tão delicado quanto manso, cobrindo-a por completo.
.............Dois dias depois, longe dali Elza estava vestida de negro e chorava no ombro de sua melhor amiga.
- Como foi mesmo o recado?
- "Está mudando, tudo. Era para acontecer?".
- O que ela quis dizer com isso?
- Não sei. Não falei com a Emilinha desde que viajei, mandei um presente para ela da casa de antiguidades que visitei, achei que ela adoraria. Foi só, não nos falamos mais.
- Presente?
- Um grande espelho misterioso e lindamente trabalhado, queria que ela tivesse uma imagem mais precisa quanto possível de si.
- Uma bela escolha.
- Eu sei.