segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Explicando, pessoal!

Oi gente!

Tô morta de vontade de escrever, mas não sobra tempo.
Em breve atualizo isso aqui.

Vocês devem ter notado uma certa diferença nos meus posts: estão imensos!
Rs.
Mas tem uma explicação.
Eu pretendia participar de um concurso literário, estava escrevendo com o foco
na montagem deste livro, daí os contos bem mais longos.
Falo pretendia porque não foi desta vez que me inscrevi, :(!
Correria total aqui no Programa que eu trabalho, fechamento de revista, mal estou
tendo tempo de respirar... achei melhor deixar para a próxima do que mandar algo
mal feito.

Enfim, é a vida!

Boa semana para vcs,
Beijões.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

A espera pelo trem

............Quando éramos mais jovens, meus amigos e eu tínhamos, além de uma grande amizade, um senso crítico que nos tornava peculiar. Não posso ser falso modesto aqui e digo a verdade quando falo que nossa opinião era de valor, portanto tínhamos influência nas rodas sociais.
- Fantasmas, esses coitados não passam de fantasmas.
............Augusto era o que mais gostava de citar essa frase, denominávamos certas pessoas de fantasmas. Eram aquelas que em nossa opinião eram sem significado, que passam pela vida e no final não fizeram nada de diferente ou que realmente tivesse alguma importância. Mas isso foi há muito tempo atrás, onde tínhamos inocência, confiança e coragem.
- Coisas passageiras da adolescência. – digo suspirando fundo.
............O céu está opaco e com nuvens pesadas, acho que vai chover. Não gosto muito de chuva, mas com este calor de hoje vejo que é necessário, tomo mais um gole do refrigerante gelado e olho novamente o relógio.
- O trem passa que horas? – pergunto no guichê, descobrindo que será em prováveis vinte minutos.
............Sento-me em outro banco mais próximo da linha, observo a trilha por onde o trem passará, está velha e gasta, mas isso não será problema. Fecho os olhos e coloco a cabeça para trás, sinto meus ombros tensos, não entendo porque ficar tenso logo agora quando estou deixando tudo para trás.
............Sempre fui assim, rápido em tomar decisões importantes e nunca me acanhei com mudanças, não me acanho com nada. Desde cedo notei que tinha agilidade para aprender as coisas, além de conversar bastante e isso junto a meu carisma me renderam bons lucros.
............Comecei a trabalhar bem cedo, distribuindo anúncios. Já de início trabalhava para duas empresas diferentes, não porque gostava do trabalho, mas porque trabalhar para duas empresas, apesar de concorrentes, era lucrativo. Tudo bem que não era algo muito ético, mas até então não era proibido. Era um trabalho desgastante, pois ficar exposto ao sol era cansativo, mas sempre o completava rapidamente, fazer esse serviço depois que se pega o jeito era fácil, distribuía um pouco para os motoristas, colocava outros nos painéis de carros estacionados, jogava um pouco pelo chão aqui e ali, quanto ao restante era queimado.
............Logo fui chamado para trabalhar dentro de uma das empresas, o gerente me achava comunicativo. Minha área era de captação de clientes e também logo aprendi a ganhar um pouco por fora fazendo certos agrados para clientes fecharem negócio, manipular orçamentos era muito fácil.
- Quantas horas? – me pergunta uma senhora ao lado.
- Falta dez para as sete. – respondi procurando ser simpático, pelo menos agora.
- Você também vai embarcar no próximo trem?
............A pergunta me fez pensar em qual resposta seria mais adequada, se eu já tivesse qualquer resposta.
- Estou esperando por ele – disse sem mentir.
............Aquela senhora me fez lembrar de quando vendia seguros, outra época fácil, como podiam ser bobos esses idosos. Foi assim durante algum tempo para mim, vários empregos pequenos, porém lucrativos.
............Mudava de emprego sempre para outro melhor e fiz isso até chegar em um cargo na prefeitura da minha cidade, logicamente apadrinhado. Não poderia estar em um lugar melhor, mas a mordomia logo acabou quando passamos por uma suspeita de desvio de dinheiro público, eu sabia que aquela investigação não ia acabar bem, isso é óbvio em quase todas as repartições públicas, enquanto os outros se agarravam com unhas e dentes a seus cargos e se defendiam de qualquer acusação sem base sólida, eu fiz minhas malas e me mudei.
............O que posso dizer é que senti falta da comodidade que havia por lá, mas em cidade menor coisas podem se tornar muito fáceis ou totalmente impossíveis, tudo circula rápido demais. Tornei-me a ovelha negra da família, mas isso realmente não me importava já que tudo que consegui foi por mim mesmo, sem ajuda de qualquer pessoa. Quanto aos amigos não me lembro de restar algum, foram se perdendo ao longo do caminho, na verdade não sei se amizade verdadeira existiu em algum momento.
- Calma meu bem, calma – vejo uma mãe falar ao longe enquanto nina um bebê que chora insistentemente.
............Lembro de Valéria e uma vontade de saber se nossa criança está bem me invade. Será que é menino ou menina? Procuro um cartão nos bolsos, agora será uma boa hora para refazer contato e além do mais, não tenho nada a perder.
- Alô? – atende uma voz masculina.
............Sinto meu corpo estremecer. Será ele o novo pai? Já não sei mais se quero falar com ela ou saber de alguma coisa.
- Alô?! – ele insiste.
- Gostaria de falar com a Valéria.
- Quem fala?
- Um amigo
............Silêncio.
- A Valéria não se encontra, foi levar a Isa na natação.
- Isa?
- Isso, a filha da Valéria.
- Ela já faz natação?
- Posso saber seu nome? Eu conheço os amigos de minha esposa e eles não ligam interessados em nossa filha.
............Desligo. “nossa filha”, “minha esposa”.
............Meu estômago dói, sujeitinho cretino. A filha é minha, que história era essa de “nossa”. Retiro o telefone do gancho e começo a discar o número novamente, paro faltando os últimos dois dígitos.
- A quem estou enganando? – digo a mim mesmo sabendo do papel ridículo ao qual estou me sujeitando.
............Valéria era minha ex-noiva, namoramos durante muito tempo. Ela não concordava com os serviços extras que eu fazia, dizia que era coisa desonesta, mas como sempre afirmei o mundo é feito de contatos e para tudo que se possa imaginar eu tinha algum contato e acabava lucrando de alguma forma, vendas de carros, casas e até empréstimos de dinheiro. Não, não cheguei a ser agiota, pensei no assunto, mas isso não estava nos meus planos, não naquele momento. Para mim não havia nada de desonesto nisso, eram favores trocados.
............Quando decidimos ficar noivos, consegui um cargo de gerência como corretor de imóveis, no qual obtive boas vendas e assim logo compramos nosso próprio apartamento. Paralelo a isso continuava com meus contatos na garagem e revenda de alguns produtos que conseguia comprando de um outro amigo, em suma se tratava de artigos eletrônicos.
............Meus problemas com a Valéria começaram quando meus negócios com a garagem ficaram mais estreitos. Ela me controlada e queria saber de tudo, como sabia que ela não concordava com o assunto escondi que estávamos fazendo uma manipulação de documentos, não sabia se os carros que nos chegavam eram contrabandeados e na verdade não me importava.
............Três meses depois Valéria descobriu que estava grávida, não nos casamos oficialmente, mas começamos a morar juntos. Fizemos uma reunião formal com os amigos e família dela, meus convidados eram somente algumas pessoas da Imobiliária. Nunca tive vontade de ser pai, mas aconteceu e o jeito era encarar o fato, estava focado em meu futuro financeiro e não queria que nada atrapalhasse.
............Dou um sorriso amargo para o nada quando me lembro de tudo que aconteceu nesta época.
............Acontece que este futuro que eu tanto almejada foi comprometido quando três investigadores descobriram nosso esquema na garagem, para minha sorte eles se acalmaram com uma certa quantia de dinheiro, para meu azar isso não parou.
............Logo estava sendo submetido a chantagens e grandes extorsões, comecei a receber visitas no meu trabalho e também em casa. Quando vi que o assunto estava no limite, tentei deixar o negócio dos carros e foi quando eles ameaçaram a mim e Valéria. Logicamente ela não sabia de nada e sendo assim enquanto de um lado sofria pressão dos policiais, do outro era a própria Valéria que tornava os minutos livres do restante do meu dia em um inferno. Todos os dias eu ouvia centenas de reclamações, além de me cobrar sobre visitas ao médico, o mobiliário do quarto e até as fraldas do bebê. Não suportava mais a situação, em duas semanas minhas coisas já estavam em outra cidade.
............A Valéria foi assunto fácil, mas me livrar dos policiais me deu um pouco de trabalho. Tive que recomeçar do zero, meu dinheiro era pouco e por um tempo vivi na espreita. Não digo que foi difícil, mas sim um tanto quanto cansativo.
............Alguns anos se passaram e me restabeleci, agora não tinha nada para atrapalhar e me prender. Sem parentes, sem esposa, sem chefe, era dono de minhas atitudes enfim. Comecei a observar as pessoas, todas tão contentes com suas companhias, com seus amigos e até com cachorros.
............Sinceramente me irritava ver alguém passeando feliz ao puxar pela coleira um bicho que tenta correr desesperadamente. Aliás, não sei por que todas as coisas ultimamente me irritavam, festas dos vizinhos, happy hour no trabalho, até os negócios. De repente as coisas ficaram fora dos trilhos, não tinha foco.
- Estou cansado, tão cansado – senti todas as veias do meu corpo circulando um sangue velho.
............Foi então quando acordei nesta manhã que tomei minha decisão, vi que não havia nada de importante onde estava e não tinha motivos para continuar aqui. Decidi não ir ao trabalho e nem mais fechar algum negócio. Vesti uma camisa amarrotada que usei no dia anterior, tranquei a casa e coloquei a chave escondida na caixa de correios, como o de costume. Malas seriam desnecessárias, só a carteira e o meu casaco preferido.
............Se o funcionário estiver certo, o trem deve estar para chegar, mas não vejo sinal dele. Olho para os trilhos enquanto visto meu casaco, levanto e jogo a garrafa vazia no lixo. As poucas pessoas que estão na plataforma se agitam, vejo a luz do trem ao longe. Encaminho-me novamente para onde estava, esfrego as mãos e sinto o coração acelerado.
............Foi só então que percebi, era eu o fantasma.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

O reflexo velado de Emília

............Chegou suada devido à intensidade dos exercícios e meteu-se no banho, cheia de seus sais e óleos. Lavou os cabelos com seus produtos artesanais, deixando o condicionador por exatos três minutos após intensa massagem nas madeixas, para o corpo tinha três tipos de sabonetes, um para cada região específica. Todas as manhãs após os exercícios, fazia essa seqüência antes de ficar imersa por quinze minutos em seus sais relaxantes. Ao término, passou o óleo pelo corpo e se enrolou em um roupão.
............No quarto, penteou os cabelos e passou uma loção nas mechas e outra nas pontas, secou-o. Olhou-se de perto no espelho e refez o desenho da sobrancelha, constatou que a pele necessitava de algumas correções, havia manchas, pequenas, mas haviam. Olhou as mãos que também tinham leves pintas e parou nas unhas, no momento não poderia agendar uma esteticista, mas uma manicure era garantido, ligou e agendou um horário.
............Anotou algumas coisas em sua agenda e verificou alguns documentos do pen drive antes de sair, enquanto clicava rapidamente no computador tocaram a campainha.
Dois homens carregavam um imenso pacote, embrulhado em papel de ceda cor-de-rosa e com fitilhos vermelhos.
- Vocês devem estar enganados.
............Conferiram a nota e o endereço, conferiram o nome, sim era para ela.
- Tem um bilhete aqui atrás. – disse um dos rapazes.
............Colado com fita adesiva havia um cartão, Emília retirou machucando um pouco o papel onde estava a fita, abriu o envelope.
- “Emilinha, achei-o perfeito para você. Beijos, Tia Adelaide”.
............Os homens colocaram o embrulho na sala enquanto a olhavam de rabo de olho, ela já estava arrependida de ter aberto a porta só de roupão, deu-lhes uma pequena gorjeta e fechou rápido a porta, girando três vezes a chave.
............Era um pacote pouco maior que sua altura, um tanto quanto esgalgado, tocou-lhe, era firme e plano a não ser pelos extremos onde tinham leves relevos. Desenlaçou o fitilho, retirou aos poucos as quatro camadas de papéis de ceda, quando a última desceu-lhe a mão viu-se no seu presente, era um espelho.
............Até onde entendia deduziu que era algo parecido com um espelho veneziano, estava em uma moldura de madeira trabalhada. Os relevos mostravam formas de cachos e flores, as quatro pontas eram protuberantes de forma arredondada como a se desenhar um mini-labirinto, a cor da pintura era de um verde bem claro, não dava para saber se a cor apagada era intencional ou se era ação do tempo, havia alguns arranhões e pequenos buracos feitos por cupins.
- Só mesmo Tia Adelaide para mandar um presente desses.
............Adelaide era uma grande amiga de sua mãe Elza, só não se tornou sua madrinha pelo protesto de Cândida, irmã caçula de sua mãe. Ela, Adelaide, era desses tipos ligados no cosmos, se guiava pela astrologia e jogava tarô, às vezes gostava de consultar os búzios e agora estava estudando numerologia. Era ligada a tudo que fosse esotérico, não tinha uma religião definida, mas mesclava sua fé com um pouco de cada crença.
............Olhou para o relógio e já estava atrasada, foi ao quarto e trocou-se. Deixou o espelho onde estava, no meio da sala, o colocaria em outro lugar mais tarde. Em pleno início de manhã, o consultório fervilhava, conferiu a agenda da endocrinologista e começou a recepcionar os pacientes.
- Por aqui Angélica – disse dirigindo a moça a uma sala, onde anotaria suas medidas e peso.
............Enquanto a moça tirava a roupa, ela não pode deixar de reparar nas camadas de gordura excessivamente grandes que saiam de toda sua região torácica, bem como de suas costas e braços. A pele indiscutivelmente flácida estava repleta de imperfeições como celulites e manchas, ao olhar grandes traços que lembravam queimaduras, Emília se arrepiou, nunca tinha visto estrias tão grossas. Olhou de relance para seu próprio corpo, nunca chegaria aquele ponto e apesar de não haver uma ínfima gordura decidiu que dobraria o tempo na academia.
............Encaminhou a paciente para a sala da doutora.
- Essa Angélica é um amor de pessoa, nunca vi alguém tão simpática – comentou a recepcionista.
- Já provou dos pães de mel que ela faz? Uma delícia. – disse a outra secretária voltando-se para Emília, que deu um meio sorriso, só se lembrava dos braços gordos e moles, sentiu repulsa de pães de mel.
............Após o expediente foi ao mercado, para as compras. Levou cereais, legumes, verduras, comprou leite integral, frutas e linhaça para seus shakes matinais, acrescentou também alguns frios, massas frescas e vinhos, controlando adequadamente podia se dar ao luxo de escapulidas.
............Chegou em casa já exausta, logo na entrada retirou os sapatos e foi com os pacotes para a cozinha. Da mesa, pode ver o espelho. Tinha se esquecido completamente dele, normalmente o chamaria de trambolho, mas tinha algo nele que a atraia.
- Dessa vez você acertou Tia Adelaide.
............Interfonou e solicitou ajuda da portaria, logo subiu o síndico acompanhado de mais um rapaz do andar debaixo. Colocaram o espelho no quarto e saíram depois de tomar um café. Agora, sozinha na cozinha Emília bebia um pouco de vinho enquanto retirava as compras e as colocava no armário e geladeira, ela não fazia refeições no período noturno, mas estava faminta e por isso cortou algumas fatias de queijo. Pensou no espelho, foi ao quarto com a taça na mão e um pedaço de queijo na boca. Passou a mão por ele contemplando-o, achou-o mais bonito que antes, interessante, realmente parecia muito melhor do que quando ela o recebeu.
............Modificou um pouco a posição, o colocou na diagonal da cama rente ao pé esquerdo, de maneira que ele ficou de costas para a porta. Observou que o espelho capturava de algum modo quase todo o quarto, sentiu-se um pouco vaidosa e arrumou os cabelos, logo depois relaxou embaixo de uma água morna.
............A janela estava aberta e a cortina dançava. Ela estava deitada na cama e seu corpo suava, transpirava a ponto de seus cabelos aderirem ao pescoço, abriu os olhos e sonolenta tentou retirar os fios, sentia-se sufocada. O lençol se embaraçava em seu corpo, tentou descobrir os pés e não conseguiu, a medida que o estado de torpor passou ela foi ficando alerta e percebeu que quanto mais esforço fazia mais o lençol se enroscava, a pressão que sentia estava agora em ambas pernas e subia para o quadril, sentiu os pés como se estivessem sendo compactados e a barriga contraia-se rapidamente, logo os braços foram envolvidos e definitivamente não tinha mais recursos para se livrar, começou a tentar se debater e sentiu todo seu corpo gelar quando viu uma cena idêntica ao seu lado, levou alguns segundos até tomar consciência de que era o espelho. Na imagem ela estava incapacitada de qualquer movimento devido a compressão, já estava ficando insuportável, sentiu uma pressão única por todo o corpo, tão forte que teve a sensação de seus ossos começarem a esmagar e a dor aguda a fez sentir falta de ar, tentou gritar mas o lençol subiu tão delicado quanto manso, cobrindo-a por completo.
............Acordou dando tapas no ar, com um pulo ficou em pé na cama e tirando o cabelo dos olhos respirava apressada, olhou o lençol que agora estava no chão, o espelho refletia a janela do quarto fechada. A medida em que se convenceu de que foi um pesadelo, acalmou-se e sentou. Cobriu-se novamente e virou para o lado contrário do espelho, olhar para ele seria reviver o sonho.
............Despertou trinta minutos antes do normal, arrumou-se com um coque no alto da cabeça e comeu duas fatias de melão. Enquanto colocava o vestido rosa chá, aproximou-se do espelho, notou que estava com profundas olheiras e a pele parecia sem viço, culpou a noite mal dormida. Seu olhar deslizou do reflexo para o espelho em si, aproximou-se bem enquanto subia e descia os dedos pela moldura.
- Podia jurar que vi estragos feitos por cupins aqui. - mas logo esqueceu do assunto, se encaminhado para o serviço.
............Era sexta-feira e o dia começou mais agitado que o de costume, no consultório sempre era assim nas segundas e nas sextas. Início de semana era quando todos prometiam iniciar mudanças e já no final da mesma era quando esperavam algum milagre, como se isso fosse possível. Saiu do trabalho as pressas, a menos de três horas teria um coquetel para ir e ela ainda teria que passar na loja para buscar o vestido que havia encomendado, a loja fecharia em breve, por isso teve que apressar-se.
............Tomou um banho rápido e fez uma maquiagem marcante, retirou o vestido e conferiu se estava livre de marcas, era lindo, cortou a etiqueta. O vestido era verde musgo em cetim e descia um pouco abaixo dos joelhos, as mangas curtas eram levemente plissadas e o decote descia em um V profundo. Colocou os pés em um scarpin de salto finíssimo e bico levemente arredondado, o único acessório a usar foram os brincos de brilhantes. Estava com uma discrição disfarçada, que ao final denunciava pura sensualidade.
- Perfeito – disse a si mesma enquanto conferia seu visual. Voltou o pensamento para seu objetivo, uma pessoa que estaria no evento.
............Ela tinha feito muitos contatos para conseguir o convite para esta noite, lá estariam presentes grandes empresários, um especificamente de uma renomada empresa onde ela desejava uma vaga na área de relações exteriores, o ramo que ela verdadeiramente gostaria de seguir. Emília tinha formação recente, mas não havia ainda ingressado na área, teria oportunidade de fazer muitos contatos naquela noite.
............Ao virar-se para pegar a carteira deparou com o espelho refletindo sua imagem sentada na cama, vestida da mesma forma mas com os cabelos em desalinho e maquiagem borrada. O grito ficou preso na garganta e a visão durou menos de meio segundo, pois ao agitar-se com o espanto derrubou o frasco de perfume, pegou-o e ergueu-se vendo no espelho sua expressão de pavor enquando abraçava o frasco, movimentou se para o lado e levantou um dos braços, a imagem a acompanhava. Desde a noite anterior quando teve o pesadelo, tinha ficado impressionada com o espelho, deduziu que era isso, mas no fundo tinha certeza do que vira.
- Será que tenho mesmo? – perguntou a si no espelho.
............Resolveu ligar para Adelaide, aquele presente começava a incomodar, estava ficando estranho ver a si mesma demasiadamente. A chamada não foi atendida, tentaria novamente mais tarde.
............Durante o coquetel tudo ocorreu melhor que imaginava, ela e sua colega circulavam pelo local, enquanto conseguiam a atenção de todos. Não foi nada difícil estabelecer contato com o empresário em questão, o famoso presidente ficou encantado com sua simpatia, bem como sua cintura fina e decote atrevido.
............Voltou para casa satisfeita, se tudo ocorresse bem, logo estava livre daquele consultório com seus pacientes asquerosos. Sentou-se no sofá, estava levemente embriagada e adormeceu recostada nas almofadas.
............Acordou com a boca seca e cabeça pesada, sentiu um leve desconforto nas costas. Fez um suco de laranja, sem açúcar e com várias pedras de gelo, tomou uma aspirina. O apartamento estava abafado, e abriu a porta bem como as janelas, para circular o ar. Ao abrir a janela do quarto, viu-se no espelho e se estranhou. O cabelo estava seco e sem brilho, notou alguns fios brancos e lágrimas quase brotaram em seus olhos.
- Meus olhos!
............Notou marcas de expressão no canto dos olhos, as quais ela tinha certeza que não estavam ali. Tocou no espelho, as rugas em seu reflexo pareciam mais acentuadas, sentiu sua mão esquentar, somente uma leve impressão e quando veio a certeza, tirou-a rapidamente e notou sua palma vermelha. A cabeça latejava, sentiu-se nauseada e logo o estomago rejeitou o suco que ela havia tomado, após um banho frio colocou uma camisola fina e parou na porta, gostaria de ter tido outra reação a não ser ficar parada. Fitou o espelho com atenção e teve certeza que ele mudara, estava sem arranhões e seu verde não estava mais opaco, tinha ganhado vida.
............Tomou mais analgésicos e tentou mais uma vez falar com Adelaide, novamente o telefone não atendeu e ela resolveu deixar um recado na caixa de mensagens. Ficou encolhida na cama com o telefone nas mãos, seu corpo estava amolecido e seus olhos pesados.
............A janela estava aberta e a cortina dançava. Ela estava deitada na cama e seu corpo transpirava fazendo seus cabelos aderirem ao pescoço, retirou com dificuldade os fios. O lençol se embaraçava em seu corpo, tentou descobrir os pés e não conseguiu, sentia-se sufocada, percebeu que quanto mais esforço fazia mais o lençol se enroscava, a pressão que estava nas pernas, subia para o quadril e sentiu os pés e barriga sendo contraídos rapidamente, tentou se debater em vão. Olhou para o lado, a cena estava no espelho, outro pesadelo. Olhava para o espelho e agora o que chamava atenção não era o reflexo e sim o espelho, estava em perfeito estado e o verde estava tão brilhoso que sua vista turvou.
- É só um pesadelo, é só um pesadelo - repetia a si mesma em desespero.
............Logo os braços foram envolvidos e definitivamente não tinha mais recursos para se livrar, a pressão era muito forte e estava insuportável, teve a sensação de seus ossos começarem a esmagar e a dor aguda a fez sentir falta de ar, tentou gritar mas o lençol subiu tão delicado quanto manso, cobrindo-a por completo.
.............Dois dias depois, longe dali Elza estava vestida de negro e chorava no ombro de sua melhor amiga.
- Como foi mesmo o recado?
- "Está mudando, tudo. Era para acontecer?".
- O que ela quis dizer com isso?
- Não sei. Não falei com a Emilinha desde que viajei, mandei um presente para ela da casa de antiguidades que visitei, achei que ela adoraria. Foi só, não nos falamos mais.
- Presente?
- Um grande espelho misterioso e lindamente trabalhado, queria que ela tivesse uma imagem mais precisa quanto possível de si.
- Uma bela escolha.
- Eu sei.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Alice e o buquê de narcisos

............Marcaram as dezenove horas, mas ele já estava atrasado há vinte e cinco minutos. Ela havia chegado adiantada e como estava cansada de esperar no carro, a encaminharam para uma das salas do espaço.
............Era uma sala muito bem iluminada e decorada. Havia um sofá e duas poltronas, no centro uma linda chaise dava charme a sala, grandes almofadas estavam no chão e em uma mesa de centro havia aperitivos e um espumante no gelo. Um aparelho de dvd tocava uma música ambiente, ela sentiu vontade de se jogar na chaise, mas não queria amarrotar o vestido ou estragar o penteado. Sentou-se em uma das poltronas e se viu no espelho, era um espelho que se estendia por toda a parede esquerda e assim o ambiente ficava duplicado.
............Contemplou-se por um momento de longe e depois caminhou ao espelho, desfilando para si mesma. Não sabia afirmar com plena certeza se era linda, mas sabia que tinha seu charme e magnetismo. Tinha cabelos lisos e negros, cortados rente aos ombros, o rosto tinha todos os traços muito bem marcados e equilibrados, nariz fino e com a ponta levemente arrebitada, as bochechas sobressaiam no seu desenho, os olhos eram castanhos e pequenos, a boca também pequena, mas de lábios gordos, ele brincava que parecia um pequeno coração. Olhou seu colo branco dentro do tomara que caia, desceu a mão até a fina cintura e parou na barriga, virou-se de perfil e continuou alisando-a, todos já notavam, mas também estava no final do quarto mês.
............Uma dos únicos minos que pediu foi um vestido exclusivo, feito unicamente para a ocasião, inclusive feito unicamente para ela, já que estava adquirindo a peça. Escolheu um belo vestido, um tomara que caia com o desenho levemente pontudo em um corte sereia, todo bordado com cristais. Como ela não havia ganhado tanto peso, apenas uma acentuada no ventre, foi fácil fazer os ajustes.
............Alisou o véu e segurou o buquê de narcisos. Adorava narcisos e fez questão que seu bluquê fosse assim, sua mãe tentou convencer a usar lírios, a sogra insistia em miniorquídeas, até a irmã sugeriu copos de leite, mas ela não cedeu, poderia abrir mão de outras coisas mas não dos narcisos. Sorriu e fez olhares ensaiando para as fotos que logo tiraria, “Será que haverá mesmo fotos?”, colocou o buquê no balcão. Abriu o espumante e bebeu uma taça em um gole só. Na sacada olhou a rua com vários carros e teve certeza que quase todos os convidados já haviam chegado.
- Alice, com licença – disse a cerimonialista entrando.
- Chegou?
- Ainda não, mas estamos todos entrando em contado. Amigos e família também estão a procura e ninguém sabe qualquer notícia, mas de qualquer forma não quero que fique preocupada, – a encaminhou para a chaise e tirou seus sapatos - vamos resolver logo a situação e tudo vai acabar bem.
............Foram interrompidas por um choro de criança e uma voz feminina nervosa, a dama de honra que havia caído ralando assim o joelho e a mãe tentava reparar a situação. A cerimonialista levantou-se para procurar o kit de socorros e deixou Alice com várias recomendações sobre tranquilidade, respiração e outras técnicas de relaxamento, como se adiantasse algo.
............No salão a aparente calma era apenas educação, todos procuravam ser discretos em suas especulações e fofocas. Se passara uma hora e treze minutos e a cerimônia ainda não havia iniciado. Uns comentavam sobre uma briga dos noivos, outros sobre a desistência da noiva, já terceiros informavam detalhes sobre uma inexistente despedida de solteiro que aconteceu na noite anterior. Os pais do noivo e da noiva haviam se reunido no lounge e iniciou-se um troca de farpas de uma forma sutil, os irmãos tentavam acalmar a situação. Alguns amigos próximos tentavam localizar o noivo, enquanto alguém foi até o apartamento outros tentavam pelo celular.
............Para evitar maiores conversas e até que alguns convidados fossem embora, a cerimonialista determinou aos garçons que servissem bebidas, o álcool ajudaria a acalmar o ânimo de todos. O Juiz da cerimônia agora se juntara com os pais e tentava convencer que o rapaz não ia aparecer, estavam gastando esforços em vão, mas não lhe deram razão, logo ele ameaçou ir embora, mas foi lucrativamente convencido a ficar pelo pai do noivo.
............No ambiente de estar, Alice já havia ingerido metade da garrafa do espumante, esquecendo-se momentaneamente que havia suspendido a bebida alcoólica de sua dieta. Estava descalço e havia retirado todos os acessórios, controlou as lágrimas, pois não queria estragar a maquiagem. Pela vigésima vez se levantou e foi até a sacada para ver se o carro de Antônio estava por lá, começou a suar apesar do ar condicionado ligado e sentiu uma leve falta de ar, culpou o vestido do incômodo e tentou desabotoar alguns colchetes e quando com muito custo abriu o quarto desistiu, tinha vontade de rasgá-los, tinha vontade de rasgar o vestido todo, sentou-se no chão e bebeu o espumante pelo gargalo.
............Ela conheceu Antônio durante um jantar beneficente realizado por Amélia, a mãe de Antônio, ele era um empresário muito bem sucedido. Durante o evento, enquanto circulava e fazia importantes contatos, se mantinha atenta para não perder Antônio de vista. Ele falava durante todo o tempo no celular, às vezes com seriedade e rigor e outras vezes leve e bem humorado, precisamente nesta noite estava fechando um acordo com uma empresa estrangeira, negócio este que lhe rendeu bons lucros e o permitiu comprar a casa na qual iriam morar. Alice era uma promoter que estava começando a ganhar um determinado espaço, havia se mudado há pouco tempo para a cidade, mas ela sabia ir pelos caminhos corretos para conseguir o que queria e ela queria ser reconhecida, ter seu espaço e principalmente muito conforto, quase como a maioria das pessoas.
............A família de Antônio não a aceitou bem, eles eram de classe nobre e apesar de totalmente esclarecidos e modernos, tinham um preconceito velado quanto a ela ser mais simples que Antônio, diziam que ela não estava a sua altura. Para a sorte de Alice isso só fez os fortalecer, o que era apenas um affair logo se tornou namoro e daí para o noivado foi um passo curto, Alice não poderia estar mais satisfeita, tudo estava dando certo e ela tinha Antônio a seu lado.
............Agora no lounge, ela estava no chão, com a cabeça nos joelhos e abraçando as próprias pernas. Perguntava-se onde estaria Antônio, tentava planejar o que faria dali para frente, já que era ele seu objetivo há tempos.
- Alice? – interrompeu uma voz masculina. Fazendo-a se levantar esperançosa.
- Oi Rômulo – disse, sentindo uma pontada de raiva ao ver o sócio de seu noivo ali.
- O que aconteceu?
- Não sei! Me diga você, o que aconteceu? Cadê o seu sócio? Vocês não são tão amigos? Era você que deveria me dizer.
- Controle-se Alice, abaixe a voz. Você bebeu? Pelos céus, você está embriagada.
- E daí? Eu mando no meu nariz.
- Vou perguntar novamente Alice, o que aconteceu?
- O que aconteceu Rômulo, é que estava tudo dando certo, tudo e eu fui ouvir seus conselhos. Foi isso que aconteceu.
- O que você quer dizer com isso?
- Você com essa sua burrice de mudar o planos, a culpa é sua. – ela cambaleava entre os pés.
- Está ridícula! Uma noiva abandonada, bêbada e ridícula.
............Tomou-lhe a garrafa vazia das mãos, com um puxão a jogou em uma das poltronas e segurou seus braços com força até ficarem vermelhos.
- Agora, você vai explicar logo o que aconteceu – disse-lhe apertando tão forte o queixo que fez os seus dentes doerem.
............Ela deu um tapa na mão em seu rosto e o empurrou com um dos pés fazendo-o cair no chão.
- Qual era o plano? Você lembra exatamente qual era nosso plano inicial? - berrou ela.
............Rômulo estava se controlando para não esbofetear Alice.
- Você se casaria com o Antônio, depois nos livraríamos dele e ficaríamos com sua parte na empresa.
............Rômulo conhecia bem Alice e quando traçou seu plano sabia que ela seria perfeita. Ele e Antônio haviam se conhecido na faculdade e um tempo depois abriram o negócio, o qual Antônio não levava a sério. Ele era o único de um casal rico e, portanto tinha tudo nas mãos, ao contrário de Rômulo que teve que batalhar muito para conseguir tudo, inclusive a amizade de Antônio, aturar um rapaz mimado não era tarefa fácil mas lhe rendeu a empresa, já que foi Antônio que entrou com o capital. Com o passar dos anos veio a cobrança dos pais e Antônio viu na empresa sua tábua de salvação, começou a se dedicar ao negócio, o que gerou um grande incômodo em Rômulo, principalmente quando em apenas alguns meses estava se saindo muito bem e fechando grandes negócios, o que transformou o incômodo em cólera. Foi quando ele reencontrou Alice em uma festa vulgar e depois de transarem no banco de trás do seu carro, sabia que teria que ser com ela para seu plano dar certo. Ele teria a empresa toda novamente, de um jeito ou de outro.
- Isso Rômulo este era o plano, mas acontece que você inventou de apressar as coisas, estava tudo ótimo, mas você estava com pressa e quis usar o truque mais velho do mundo. Agora estou grávida e para nada!
- Qual o problema nisso, Alice?
- O problema, seu babaca, é que o Antônio não pode ter filhos.
............Rômulo não entendeu nada, Antônio nunca comentara o assunto com ele e isso não teria lógica agora, já que Alice estava quase no quinto mês, ele já deveria ter falado isso há tempos para ela.
- Ele não estava se sentindo bem há algum tempo, foi ao médico e fez vários exames, descobriu que não pode ter filhos, ontem.
- Mas como assim? O que ele estava sentindo? Que exames foram esses?
- Não sei Rômulo, eu não sei de nada. Foi o que ele disse, ontem. Mal sabia que ele estava indo ao médico, nem sei se ele realmente estava sentindo algo, sei que ontem ele me esfregou o exame na cara e antes que você fale algo, eu conferi tudo, várias vezes, o exame era dele e realmente constava o que ele disse.
- Mas... e aí...
- Aí que eu fiz minha melhor cara de sonsa, chorei, me fiz de vítima. Falei que o amava, que aquele exame estava errado, que ele era tudo para mim e nunca o trairia, até fingi um acesso de raiva por ele estar duvidando de mim. Queria ao menos ganhar algum tempo para efetivarmos o casamento e eu não sair no prejuízo. Aí ele foi embora sem falar nada, só foi lá para me dizer que não pode ter filhos - suspirou e deu um riso pesado - ele acabou comigo - levantou-se, alisando o vestido - Aí foi embora, não disse nada sobre casamento, sobre terminarmos. E agora estou eu aqui.
- Ele não vem. – disse ele enquanto fumava um cigarro.
- Ah, sério?! - falou de forma hipócrita.
- Ele sabe sobre a gente?
- Não, acho que não, se sabe não disse nada.
- Bem, então acho que nosso plano falhou – disse ele apagando o cigarro e saindo.
- Ei, espera aí! Nosso plano falhou e agora tchau?! Como vai ficar esta história?
- Não vai ficar, eu tenho que tomar novas medidas e você vai voltar para aquela sua vidinha medíocre. É isso querida, isso de engravidar para arrancar dinheiro de algum trouxa não deu certo para você – disse ele passando mão levemente pelo rosto de Alice.
............Mas foi quando o clima mudou, a raiva e desespero foram embora e Alice ficou calma, um sorriso sarcástico brotou em seu rosto. Ela calçou os sapatos, retirou o véu, segurou novamente o buquê.
- Será que não deu certo Rômulo, meu querido?
- Como? – disse ele com rosto irônico.
- Sabe, meu anjo, logo meu advogado vai entrar em contato com você, pois este filho que está aqui dentro é seu.
............Rômulo quis negar o que ela disse, ofendê-la das formas mais variadas possíveis, mas não conseguia soltar qualquer palavra, no fundo, sabia que ela falava a verdade. Alice foi até a porta e de costas jogou o buquê, que caiu em Rômulo. Olhou-o com despeito.
- Você não se contentava com metade de uma empresa, agora vai ter que se contentar com metade da metade.
............Enquanto Rômulo espalhava histéricamente narcisos pelo quarto, ela passava percorria o salão com o rosto borrado enquanto gargalhava.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

O Diagnóstico

............- Mas não é possível, deve haver alguma coisa que possamos fazer.
............- Sinto muito Sr. Frederico.
............- Sente muito?! Quem vai morrer sou eu e você fala que sente muito? Existem tantos tratamentos, tantos recursos...
............- Sr. Frederico, logicamente o Sr. pode procurar uma segunda opinião. Mas, infelizmente, seu estado é terminal, já está avançadíssimo, não há nada que se possa fazer.
............- Mas eu não sentia nada, só agora apareceram esses sintomas e mesmo assim, leves, nunca achei...
............- É uma doença silenciosa.
............Frederico saiu do consultório do Dr. Miguel e sentia-se entorpecido, todos falam que quando se recebe esse tipo de notícia as imagens passam a mil na cabeça, mas ele estava vazio, não conseguia se lembrar de nada, não conseguia pensar em nada.
............Saiu do consultório gelado pelo ar condicionado e o sol forte cegou-lhe momentaneamente, o mormaço seco invadiu-lhe o corpo e sentiu-se tonto, massageou as têmporas. Atravessou a rua para comprar uma aspirina, sua cabeça latejava. Voltou e sentou-se na praça, acendeu um cigarro.
............- Isso não faz bem para saúde – disse uma voz.
............- Não faz a menor diferença agora – e olhou para o homem gordo que estava sentando ao seu lado com o rosto de surpresa.
............- Desculpe, não foi grosseria, é que realmente isso não faz diferença, entende? Não vai fazer a mínima diferença – e desatou a rir, gargalhou tanto até se engasgar com a própria saliva e o homem gordo ter que dar-lhe tapas nas costas.
............- Melhorou? – perguntou o homem após abaixar seus braços.
............- Na verdade, acho que não. – passou a mão pela barba que começava a crescer, os olhos estavam perdidos.
............- Eu te vi no consultório. Más notícias?
............Ele reparou no homem gordo, realmente seu rosto era familiar, era isso, ele era um dos pacientes na sala de espera do Dr. Miguel.
............- Péssimas.
............O homem se chamava Paulo, ao contrário dele, a notícia tinha sido muito boa. Ele precisou ser internado as pressas, suspeitavam de uma doença mais grave, fez exames e descobriram que o problema era leve, marcou-se uma cirurgia, procedimento simples, para o próximo mês.
............- Estou sentindo dores, mas ele passou alguns remédios, disse que não é nada demais.
............Ele não queria conversar, aquela simpatia estava o deixando sem paciência, sentiu a cabeça latejar ainda mais. Com ele tinha sido tudo ao contrário. No começo foram leves incômodos, foi ao médico por insistência de sua namorada, fez inúmeros exames, pensaram ser coisa não grave, mas hoje acabou descobrindo que nenhum remédio, tratamento ou cirurgia tinham algum valor para seu caso. O médico falou que agora era esperar. Frederico sorriu, “Esperar”, que coisa mais sombria de se fazer, esperar a morte.
............Eles conversaram mais um pouco, Frederico falou que há uma semana havia trocado de carro, um planejamento de meses. Paulo abriu a carteira e tirou do bolso uma foto dobrada. Era uma menina de pele chocolate, olhos negros que lembravam jabuticaba, no cabelo haviam inúmeras e pequenas trancinhas, segurava uma boneca de pano na mão. Segurando-a no colo estava uma mulher alta e muito bonita, com um grande sorriso. Frederico pode sentir o amor e orgulho que Paulo tinha por sua família, e foi o único momento naquele dia que pode sentir-se em paz, ficou feliz por Paulo estar bem.
............Frederico ficou por mais algumas horas sentado no banco após Paulo ter ido embora, debruçou-se sobre os joelhos olhando para não sabe o que. Conferiu o celular e havia oito chamadas perdidas, não quis saber quem foi, provavelmente seu chefe.
............“Agora posso mandá-lo para onde quiser”
............Mas também não tinha ânimo para isso. Deixou seus próprios pés lhe guiarem até sua casa, ele sempre pensava melhor enquanto andava. Passou pela igreja, um homem de terno e gravata lhe entregou um jornal e lhe explicava sobre os horários e atividades da semana, no alto do jornal estava escrito “A cura para todos os males”, pensou em entrar, mas não foi a falta de coragem que o impediu, foi a vergonha, se sentia em débito com os céus há tempos.
............Destrancou a porta do seu flat, enquanto ouvia o casal de vizinhos brigando. Lá dentro tudo era uma bagunça. A TV estava dando as notícias do dia, ele novamente havia a esquecido ligada, blocos de papéis estavam abertos na mesa ao lado de algumas folhas rasgadas, havia roupas sujas no chão e poucas roupas limpas no closet. A geladeira estava vazia e ele sentia fome, caixas de pizza estavam sobre a pia e ele sentiu que teria que pedir outra novamente. Pegou uma cerveja no armário e sentou-se na varanda, sorveu o líquido que estava quente enquanto desabotoava a camisa.
............Realmente não sabia o que fazer e não tinha a mínima vontade em pensar no que fazer. Não voltaria mais ao emprego, foi sua primeira decisão. Lembrou-se que não ligou para sua namorada o dia todo, e notou que ela também não havia ligado mesmo sabendo que ele tinha ido receber uma resposta do médico. Já fazia muito tempo que ela andava distante, ele já havia pensado antes que ela estava tendo um caso, agora sentado ali na varanda ele tinha certeza.
............De repente seus pensamentos se tornaram claros, conseguia ver coisas que não via há muito tempo. Percebeu que a namorada tinha um caso com o seu primo, mas não se importou com isso, já havia pensado em terminar com ela, estava namorando por conveniência. Percebeu que sua mãe o ligava sempre e esse sempre era porque precisava de dinheiro. Tentou se lembrar de algum amigo que era presente, lembrou-se das farras, cervejas, mulheres, mas não se lembrou de nenhum que apenas se satisfazia com conversas ou o ligava para saber como estava sua vida.
............Pensou que ele também era mesquinho e sovina. Mas o que não se podia negar era que ele havia trabalhado muito, tinha um flat em um apartamento de luxo, suas roupas eram de boas marcas, o carro em sua garagem era zero e do ano. Era só com isso que ele se importava realmente, talvez não tivesse pessoas ao seu lado que lhe dessem algum valor porque ele também não valorizava nada do que não lhe trouxesse lucro de alguma forma.
............Lembrou de sua infância e do cheiro de chuva. Sempre que chovia saia para colocar barcos de papel em poças d´agua, naquela época ainda poderia haver algum tipo de sentimento verdadeiro, era uma época onde as coisas eram mais puras. Teve vontade de comer bolinho frito que sua avó fazia, tentou pensar em algum lugar que pudesse vender isso, mas concluiu que só serviria se fosse o da sua avó.
............Fazendo um balanço de tudo, não conseguiu ver nada de significativo em sua vida. Já estava na quinta cerveja e não conseguia sentir sono, arrastou a camisa com os pés para trás do sofá, estava suado, o corpo pregando, sentiu-se mais sujo do que nunca. Dirigiu-se até o banheiro, colocou água morna até a borda, abriu o armário e selecionou seis frascos diferentes. Mergulhou na banheira com sapatos de couro e várias bolinhas coloridas nas mãos.
............Foi três dias depois, durante uma manhã ensolarada, que um médico discava insistentemente para dois números.
............- Dr. Miguel, com licença...
............­- Só entre se você tiver conseguido falar com um dos pacientes, você conseguiu? Conseguiu falar com o Frederico ou com o Paulo?
............- Não Dr. Miguel, é que...
............- Então saia Letícia, saia e só volte quando conseguir falar com eles.
............- Estão mortos.
............O médico parou imóvel com seu dedo indicador ainda apontando para a porta.
............- Isso mesmo Dr., os dois estão mortos. Frederico foi encontrado dentro da banheira de seu apartamento após ter ingerido uma overdose de pílulas.
............- E Paulo?
............- Ainda não se sabe, a mulher disse que aconteceu durante o sono, ela percebeu o corpo gelado durante a madrugada.
............- Letícia, quero todos os detalhes sobre isso, veja agora para onde encaminharam o corpo, quem é o legista responsável, tudo.
............A mulher fechou a porta, ele encostou-se na cadeira e o mundo girava ao seu redor. Segurou os laudos em suas mãos enquanto olhava novamente os resultados, agora corretos para os respectivos pacientes. Apressou-se em queimar os laudos impressos e enquanto fazia algumas alterações iniciais no sistema, pensou nos contatos certos para tudo ficar em ordem. Aliviou-se, ia conseguir, só tinha que agir rápido para que sua carreira não fosse prejudicada por uma troca de apenas dois diagnósticos.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

A colheita dos morangos

..........Estava sentada debaixo do pé de manga refrescando os pés na represinha quando vi o carro se aproximando. Era final de tarde e havia achado que eles não viessem, já estávamos a quase quatro dias na fazenda e nada deles, mas enfim vieram só para o final de semana. Foi aquele alvoroço na casa, tia Marina correu ao encontro de Naninha e lhe puxou a orelha por terem demorado tanto, meu pai ralhava com o Célio por eles ao menos não telefonarem. Estávamos reunidos na fazenda da família para o nosso evento anual: a colheita de morangos.
..........Todo ano era assim, a família se reunia por volta de uma semana pelos morangos. As tarefas se dividiam em duas partes, a primeira era a colheita e depois era hora da produção onde fazíamos geléias, doces, bolos e às vezes até licores. Não era questão apenas de ser necessário ou lucrativo, além de ser gostoso tanto no paladar quanto na ação, a verdade era que a época da colheita do morango era uma espécie de confraternização, mais importante que qualquer aniversário, natal ou ano novo.
..........Sacudi do vestido um punhado de terra e fui ao encontro de minha irmã.
..........- Sua desnaturada! Foi só casar com esse inútil do Célio que nos esqueceu.
..........Célio sorriu maroto enquanto retirava as malas do bagageiro.
..........- Ah Dora, como sempre dramática! - divertiu-se ela.
..........Deu-me um longo abraço e depois um beijo de estalo nos lábios. Meu pai torceu o nariz.
..........- Já disse que isso é nojento. Vocês são mulheres e ainda por cima irmãs. Quando vão parar com essa besteira de beijo?
..........Desde criança eu e Naninha sempre fomos unha e carne, tínhamos cumplicidade, amizade, zelo e um carinho extremo, carinho este que era motivo para a implicância de meu pai. Dizia ser desnecessário e desrespeitoso, nunca entendi tanto alvoroço por uma coisa tão inocente. Ele passava os dias a falar ou gritar, colocava-nos de castigo, mas quando viu que as palmadas já não adiantavam, desistiu, isso no final de nossa adolescência.
..........De filhos éramos só nós duas, provenientes de uma mesma gravidez complicada, somos gêmeas bivitelinas. A única coisa que temos de semelhante é o amor que temos uma pela outra e nossos olhos, grandes e amendoados. Naninha é mais clara e tem cabelos louros escuros, com grandes cachos nas pontas, é linda e quando criança parecia uma pintura. Minha estatura é menor, a pele tem um bronzeado natural, cabelos um pouco mais escuros e extremamente lisos, corpo com grandes curvas. De personalidade também não somos idênticas, sempre fui mais atirada que Naninha, desde criança era impulsiva e expansiva, gosto de ser alegre, de festas e saídas. Minha irmã era um pouco mais contida, não chegava a ser tímida, mas discreta, ela preferia os romances e tecidos de ceda cor de rosa.
..........Sou a mais velha, dois minutos, porém mais velha. Acho que por isso tomei para mim a responsabilidade de cuidar e proteger minha irmã, sempre foi assim, mas isso se acentuou mais desde o falecimento de nossa mãe, o que aconteceu durante um sábado de manhã.
..........Lembro que era final da manhã e estávamos voltando da aula de música, discutimos durante o caminho, pois Naninha andava muito devagar, eu queria chegar logo em casa, íamos almoçar fora. Já na esquina percebi tudo.
..........- O carro da tia Zélia está na porta, ela vai com a gente? – disse Naninha.
..........- Não sei – respondi já sabendo que não haveria mais almoço algum, tia Zélia nunca ia a nossa casa e aquilo só poderia significar algo ruim.
..........Quando estávamos quase no portão, tio Carlos estacionou apressado seu carro.
..........- Oi meninas, e então, vamos almoçar?
..........Naninha correu e deu um pulo em tio Carlos, era nosso tio preferido, sempre nos ensinava coisas que nossos pais morreriam se soubessem. Ele tinha um sorriso no rosto, era um sorriso frio que parecia pedra. Mantive-me parada.
..........- Não. Quero entrar, tenho que falar com minha mãe.
..........- Dora, é melhor irmos almoçar, depois você entra em casa.
..........- Não, vou entrar agora!
..........- Depois – disse ele forçando-me a entrar no carro.
..........Naninha tinha a cara sonsa de quem não está entendendo nada. Ele nos levou a uma lanchonete e pediu bastante batata frita e milk shake duplos, mas não comeu nada, disse que estava controlando o colesterol. Enquanto minha irmã se esbaldava, eu não conseguia tirar os olhos de tio Carlos.
..........- O que foi agora Dora?
..........- Quando você vai contar? – desafiei-o, enquanto ele tentava permanecer calmo.
..........- Termina de comer sua batata.
..........- Contar o que? – disse Naninha curiosa – Ah, tio, vai, conta!
..........- É tio, conta logo que nossa mãe morreu.
..........Minha mãe estava com câncer, já tinha feito inúmeros tratamentos e estava se “recuperando em casa”, hoje eu sei que não havia mais nada que se pudesse fazer em seu caso. Enfrentei melhor que Naninha, ela chorou muito por muitos meses, não conseguia dormir sozinha e não tinha vontade de sair de casa, me afastei um pouco de todos para fazer companhia a ela. Na época meu pai também se afastou, como se estivesse em algum mundo particular. Agora isso não importava mais.
..........- Anda logo com isso Célio – Naninha estava na porta do quarto com a mão na cintura. Ia sair, mas voltou para ajudar o marido a terminar de desfazer as malas.
..........- Não sei para que isso – comentou tia Zélia – tirar para depois colocar tudo de novo – Vem logo aqui para baixo, vocês dois – gritou, depois foi para a cozinha.
..........Da sala pude ouvir a conversa dela com Paloma, a esposa do tio Carlos.
..........- Está sim, é só olhar. Naninha sempre foi lisa, e se você reparar bem lá, está ficando arredondada.
..........- Zélia, não começa, não começa a colocar coisa onde não tem.
..........Comecei a namorar antes que Naninha. Tinha 16 anos quando perdi a virgindade, ela foi a primeira a saber, pensei que ia falar um sermão, mas pelo contrário, a curiosidade típica da minha irmã falou mais alto, queria saber de todos os detalhes, quanto mais eu contava mais ela perguntava. Depois que passou a curiosidade Naninha mudou comigo, passou uma semana emburrada, me dava respostas truncadas, evitava conversas comigo.
..........- Me empresta aquela sua blusa verde?
..........- Não.
..........- Mas porque não? O que tem demais?
..........- Vou usar.
..........- Não vai nada, vi que você separou aquele vestido azulado.
..........- Não vou emprestar porque eu não quero, entendeu? E sai daqui de perto, está me atrapalhando.
..........- Naninha que foi que eu te fiz? Porque anda tão mal humorada?
..........- Mal humorada?! Ah, desculpe Srta. Alegria, desculpe estragar seu dia com o meu mau humor. Porque você está aqui ainda se incomodando com minha presença? Vai logo encontrar com esse seu mais novo amiguinho – ela já estava aos prantos.
..........- Ah não, ciúmes Naninha?
..........- Enquanto você se deita com quem você quer, eu nunca nem beijei na boca.
..........Então era isso, ela nunca havia beijado. Abracei-a, ela chorou no meu ombro, afaguei seus cabelos e deitei-a em minha cama, sentia-me tão bem com ela tão próxima a mim, deixei de sair e resolvi passar a noite com Naninha. Pela manhã, ela era outra, aliás, era a linda Naninha de sempre, porém com um ar de moleca custosa que a fazia brilhar ainda mais.
..........- Já estamos indo pessoal, se apressem.
..........Peguei meu chapéu e Naninha que já estava do meu lado passou a mão na minha cintura. Célio ficou mais atrás, observando. Bonito o Célio, além disso, bem apessoado e moralmente inquestionável, o marido perfeito para a esposa perfeita, eles juntos eram o casal modelo. Estavam casados há apenas um ano e, portanto, ainda na boa fase.
..........- Você sumiu de mim – disse fazendo beiço, enquanto ela colocava morangos na minha cesta.
..........- Desculpe Dora. Admito que sumi um pouco, mas é o trabalho, e ainda tem o Célio que vive pedindo atenção, tem dia que me sinto tão exausta e sufocada. Sinto tanto sua falta. Me perdoa?
..........- Só se me der esse morango – Ela riu, e colocou um grande e vermelho morango entre meus lábios. Passou a mão pelo meu rosto e se aproximou, que lindos olhos eram os dela, colocou o dedo no canto da minha boca para secar uma gota, e o passou pelos meus lábios.
..........- Os morangos esse ano estão melhores do que nunca – disse tio Arnaldo se aproximando, olhava-nos com ar duro.
..........- Sim tio, estão sim – Naninha se levantou e foi procurar por Célio.
..........Continuei colhendo os morangos enquanto via Naninha se afastar, tio Arnaldo também saiu, mas podia sentir seus pensamentos pesados.
..........Vi Célio colocando Naninha entre suas pernas, sussurrando coisas em seu ouvido e ela rindo baixo, enquanto colocava uma mecha de cabelo atrás da orelha. Tentei reparar na barriga de Naninha, mas para mim estava lisa como sempre, não sei por que mas de certa forma fiquei aliviada, foi apenas mas uma das coisas que percorriam a imaginação criativa de minha tia. Célio me viu olhar e passou as mãos pelas pernas de Naninha, como a tentar me provocar, senti minha face ruborizar “Que atrevimento desse sem noção”. Quando ele subiu as mãos para a metade das coxas e tentou colocá-las dentro do vestido, deixei tombar minha cesta de morangos.
..........- O quarto não fica muito longe daqui, não acham? – disse repreendendo-os.
..........Naninha ficou desconcertada e quando percebeu que Célio estava com um sorriso zombeteiro no rosto, começaram a discutir.
..........Célio sempre foi o homem perfeito, mas não nos demos bem desde que o vi a primeira vez, essa perfeição toda dele não me convencia, ele percebia isso, pois de uma forma ou outra procurava me implicar.
..........Ele saiu pisando duro da colheita com a cesta pela metade, Naninha torceu o nariz e veio me ajudar com os morangos.
..........- Qual é o problema dele? Porque ele me implica tanto?
..........- Achava que ele tinha ciúmes de você, hoje não tenho tanta certeza.
..........- Como assim?
..........- Nada – ela ficou com o olhar trêmulo.
..........- Como assim? – perguntei já desconfiando da resposta.
..........- Acredito que é puro despeito, orgulho ferido mesmo.
..........Continuamos colhendo os morangos em silêncio.
..........Quando Célio e Naninha começaram a namorar, logo começaram os problemas. Confesso que fui eu que comecei as implicâncias, tinha ciúmes de Naninha, ela não era mais a mesma, tinha se tornado impetuosa e independente de um momento para outro. E havia o Célio, o perfeito. Tinha certeza que ele não era nada perfeito, não o suficiente para minha irmã. Foi durante um retiro que tive minha certeza, eles já estavam noivos, prestes a se casar. Enquanto Naninha se concentrava em seus trabalhos com o grupo da igreja, encontrei Célio fumando escondido nos fundos do acampamento.
..........- Naninha não sabe que eu fumo, por favor, não conte.
..........- É claro que não Célio, e estragar sua imagem de bom moço?
..........Aproximei-me dele, tinha acabado de sair de um banho de rio e estava com a saída de banho molhada. Passei a mão pelo seu pescoço e nos encostamos em uma das árvores.
..........- Afinal Célio, você é perfeito em tudo, não é?
..........- Mais do que você imagina.
..........Quando estávamos vestindo nossas roupas, Naninha chegou. Ele gaguejou, eu a olhei vitoriosa, ele não era o homem que ela pensava e eu havia acabado de provar tudo. Naninha me olhava com cara de medo, não era raiva, era medo. Ficamos sem conversar durante um mês, Célio às vezes me ligava para tentar algum novo encontro, sentia nojo, sempre que podia humilhava-o de todas as formas. Ficamos sabendo do casamento deles dois dias depois de terem assinado os papéis, meu pai se sentiu magoado pelo casamento ser apenas no cartório e por não avisarem ninguém. Pela primeira vez Naninha não se importou nem um pouco, ainda estava magoada. Alguns dias após saber da notícia do casamento fui a casa dela, esperei Célio sair para o trabalho e entrei.
..........- O que você está fazendo aqui?
..........- Naninha, já tem mais de mês que não nos falamos, precisamos conversar...
..........- Não, não precisamos – ela subiu para o banheiro, e antes que fechasse a porta, eu a segurei.
..........- Eu fiz aquilo só para você ver quem ele é de verdade, não é homem para você, mas não adiantou nada não é? Você se casou com ele e escondida! O que você tem na cabeça, será que não entende?
..........- Quem não entende é você Dora, o problema nunca foi o Célio.
..........- E qual é o problema então?! – a culpa estava me consumindo.
..........- O problema é você preferir ele a mim!!!
..........- Não Naninha, nunca, não é isso. Eu fiz isso por amor à você, nunca senti nada pelo Célio, ele vivia me ligando, se eu quisesse ele eu já teria. É sério, eu simplesmente não queria que vocês se casassem, é isso – sentei no corredor e chorei, ela ficou parada algum tempo, depois se abaixou e ergueu minha cabeça.
..........- Você jura? Você tem certeza que foi por este motivo?
..........- Juro Naninha, juro. Não suporto ver você com uma pessoa que sei que não é o que você merece.
..........- Dora, fique calma – Ela me abraçou sorrindo – Está tudo bem agora, não dê a importância que o Célio não tem. Vamos passar uma borracha nisso.
..........E agora durante a colheita, ela falava no despeito do Célio, não entendi se ela simplesmente explicava a situação ou se era mágoa. Senti vontade de falar, de ajoelhar, de dizer tudo o que meu coração pedia, de trazê-la para perto novamente.
..........- Terminamos, vamos? – disse ela se erguendo e indo para casa.
..........A cozinha estava a mil, todas as nossas cinco tias conversavam ao mesmo tempo. Na varanda os tios e meu pai reunidos tocavam viola e bebiam cachaça. Os primos mais velhos fizeram uma rodinha e jogavam truco, os mais novos corriam pelo gramado. Pude ouvir uma discussão abafada no andar de cima, era Célio e Naninha, fiquei parada na escada tentando escutar algo, só conseguia ouvir frases soltas, algo sobre mim e a Naninha, algo sobre mãos e coxas, algo sobre beijos. Ninguém notou nada e o restante do dia ocorreu de forma normal, a casa cheirava a morangos.
..........Um pouco depois estava encostada na soleira enquanto raspava o fundo da panela suja de chocolate. Vi Célio me encarando, ele me olhava com desprezo, podia sentir a raiva pulsando na veia de seu pescoço. Sorri para ele, que saiu pisando duro. Naninha que viu, começou a rir.
..........- Você não tem jeito.
..........Como o de praxe, passamos o restante do tempo na cozinha e ficamos entre panelas até a hora do jantar, após a ceia todos se prepararam para dormir.
..........A noite estava quente e eu estava em meio à outra crise de insônia, desci para pegar um pedaço da torta de morango. Havia alguém no sofá da varanda, cheguei mais perto e puxei o fino lençol, era Célio. Estava em sono profundo, usava apenas uma bermuda gasta que deixava a vista sua barriga estruturada. Aproximei-me de seu rosto e pude conferir que sua respiração estava pesada. Levantei e afastei-me mansamente.
..........“Naninha está sozinha” – pensei.
..........Subi as escadas e encontrei a porta do quarto somente encostada, quando abri a vi sentada na cama.
..........- Demorou. – disse-me sorrindo.
..........- Você não me avisou nada. Agora que vi Célio dormindo lá embaixo.
..........- Pensei que você tivesse percebido hoje à tarde.
..........- Quando você se casou com ele, meu coração doeu tanto, você o preferiu a mim.
..........- Quando naquele acampamento eu vi você e Célio indo para trás das barracas, acompanhei tudo, vi quando ele tirou sua blusa, vi quando ele ergueu suas pernas. Observei seu rosto, sua respiração. Meu coração também doeu tanto.
..........- Pensei que você houvesse me perdoado por isso, já expliquei...
..........- Dora, preste atenção, nunca senti raiva. Meu coração doeu de medo – me lembrei da expressão dela naquele dia – foi você que preferiu o Célio a mim, senti tanto medo em te perder para ele.
..........- Nunca Naninha...
..........- Ele é melhor que eu?!
..........- Nunca Naninha.
..........E como há anos atrás, abracei-a, mas dessa vez fui eu que chorei em seus ombros. Ela me afagou os cabelos e me levou até sua cama, a sensação de estar próximas novamente me fazia tão bem, e então foi que ela resolveu passar a noite comigo.
..........Quando a madrugada começou a clarear, notei alguém espiando pela fresta da porta, era Célio. Perguntei-me se ele havia chegado naquele momento ou se havia ficado olhando a noite toda, torci para que ele estivesse ali durante a noite inteira. Dessa vez fui eu a sorrir zombeteiro, enquanto me enrolava nas pernas de Naninha.
..........Pela manhã enquanto alguns faziam as malas e Célio já estava na estrada há muito tempo, Naninha e eu molhávamos os pés na represinha enquanto comíamos morangos.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Desafio

Um amigo poeta nos propôs um desafio: um término de um relacionamento por email ou carta.
Primeiramente, Thiago adorei ter lembrado de mim! Já estou lisonjeada só por isso.
Obrigada!
.......................
Voltando ao desafio...
Bem...
Pensando nesta temática a primeira coisa que me veio a mente foi "Cretinice terminar assim..."
CAZAM!
Pois bem, seguindo meu raciocínio, segue minha resposta:
(Diga-se de passagem: sem nenhum romantismo e muito cretina)
.......................
.......................
"Querido,
.......................
Lindo seria eu dizer que não tive coragem de olhar nos seus olhos para fazer o que vou fazer agora, lindo seria eu inventar qualquer desculpa para justificar essa minha atitude, aliás, lindo seria ter alguma justificativa boa o suficiente para você, pois nunca se satisfaz com nada...
Mas a verdade docinho, é a que eu sempre te disse: o mundo não é justo.
Portanto não seria eu a ser.
O que acontece, meu anjo, é que não suporto mais essa vida, quer dizer, não suporto mais você!
Tenho uma visão um tanto quanto diferente da sua sobre nossa atual situação: Não somos carinhosos, viramos mel açucarado. Não somos presentes um com o outro, viramos gêmeos siameses. Não nos dedicamos a nós, fugimos da sociedade.
E hoje, aqui prestes a ir ao meu serviço me dei conta de quanto é medíocre isso tudo.
Quero minha personalidade, quero minha individualidade, quero ter amizades vadias, quero noitadas com bebidas... quero viver...
Sei que você deve estar gaguejando ou até lacrimejando, pode ser que tenha quebrado um ou dois pratos aí em casa, mas a verdade é que nada disso me importa mais.
Estou livre!
Não sei onde você está com a cabeça. Mas para mim basta.
E antes que eu exploda: que se exploda você!
..........................
Adeus!!!
........................
........................
PS.: Já liguei para nosso advogado e ele cuidará de todos os trâmites legais, estou de férias daqui a três dias e tudo que tiver que conversar que seja com ele. Nos vemos no dia da audiência."
........................
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Repasso o desafio para:
e

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Jantar a luz de velas - final (VI)

(...)
............Ao voltar para casa, a encontrou ainda dormindo. Sentiu-se culpado e uma tristeza invadiu-lhe por ver sua mulher naquele estado, prometeu tentar tornar as coisas mais agradáveis possíveis. Assim que ela acordou, estranhou a presença dele na cama, ele não pode deixar de sentir animado, ela havia voltado. Ele ria e só sabia pedir perdão por tudo, por sua ausência e por ela estar assim, ela com a cabeça em seu ombro chorou, se sentia tão sozinha e não acreditava que ele estava ali novamente. Ela contou tudo que havia acontecido em sua ausência, e apesar dele já saber, deixou que ela falasse, no final ela também pediu perdão. Fizeram amor durante muito tempo.
............As semanas decorreram bem, mas logo ela começou com algumas crises, ele não sabia ao certo identificar o que era e não queria fazê-la ir ao médico. No começo a notava triste e cabisbaixa, eram horas de silêncio intermináveis, em outros momentos ela ficava nervosa sem motivo, perguntava se ele não via ou ouvia o que estava acontecendo a sua volta, ele não entendia o que ela queria dizer. Começou a encontrá-la durante várias noites conversando sozinha no quarto do bebê, como da primeira vez ele tentou colocou novas fechaduras, mas ela sempre achava as chaves.
............Então ela começou a falar sobre terem um filho, ele achou uma péssima idéia, mas logo ela veio com a notícia da gravidez e dias depois a encontrou no banheiro chorando, outro aborto espontâneo. Ele ficou desesperado, mas não conseguia notar nenhum sinal de sangue e ela se recusava a ir ao médico. Na mesma semana estranhos barulhos começaram na casa, ele sempre se levantava de madrugada para verificar e não encontrava nada, somente gavetas abertas, retratos caídos ou bolas espalhadas. Em uma dessas noites quando voltou para cama, a encontrou acordada “Acho que agora sim você está vendo o que está acontecendo aqui”.
............Dois meses depois ela informou uma nova gravidez e no mesmo dia um novo aborto espontâneo, ela chorou a noite inteira e se arranhou nos braços. Ele a levou ao médico, a força, que a examinou e informou que nunca havia ocorrido gravidez. Ela deu um tapa forte no rosto do médico e saiu o ofendendo aos berros pelo corredor, ele não sabia se sentia tristeza ou vergonha.
............As notícias de gravidez e aborto espontâneo continuaram por mais alguns meses. Ela agora só vivia trancada no quarto e quase não comia, ele só vivia por ela. Já havia se acostumado a lidar com as crises dela, já havia se acostumado a sua ronda de madrugada pela casa para verificar barulhos e guardar coisas misteriosamente espalhadas ou ligadas, já havia se acostumado com o menino de macacão jeans e blusa listrada correndo pelo jardim ou sala.
............A mulher vivia conversando com alguém imaginário e ele fingia não notar, ela tentava lhe contar sobre um garoto de cabelos claros e ele desconversava. Ele não podia admitir que às vezes tivessem as mesmas visões, ela tinha que sentir nele alguém saudável o bastante, alguém que realmente pudesse ajudá-la. Mas a verdade era que também era comum para ele ver o garotinho, ver seus brinquedos espalhados, ouvir seus choros e risadas durante a noite, ou ver seu vulto diariamente. Em uma de suas andanças pela madrugada, o viu brincando na cozinha com a torradeira, mas estava com muito sono para dizer que aquilo era perigoso. Nada mais era estranho para ele, nada mais o desanimava ou o assustava.
............Porém repentina e incrivelmente tudo havia mudado há duas semanas, assim, sem explicação e subtamente. Ele não sabia ao certo se confiava naquela mudança. Há 15 dias atrás, a sua mulher havia acordado bem-humorada e desde então não dava sinais de recaída, os barulhos pararam na casa, ele pode começar a dormir uma noite inteira de sono, pois não recebia mais a visita do garoto. E agora estava ali, preparando um jantar a luz de velas.
............Voltou seu pensamento para o agora, para o jantar, para a cozinha. Terminou de arrumar tudo. Subiu as escadas para buscá-la e sempre sentia certo receio deste momento, pois não sabia até quando toda aquela normalidade duraria. A viu na porta do quarto do bebê, sentiu um frio na barriga, mas ela o olhou com olhos doces. Estava usando um vestido florido, cabelos soltos e grandes brincos, estava linda e alegre. Ele sentiu uma ternura imensa em enfim vê-la tão arrumada, o fez lembrar de quando trabalhava no banco e a conheceu. Ela fechou o quarto, foi ao banheiro, jogou a chave no sanitário e deu descarga, caminhou em direção a ele.
............“Gostou? Me arrumei especialmente para hoje, nosso dia especial. Sabe, estive pensando, acho melhor mudarmos de casa, vamos destruir tudo isso daqui e enterrar com as lembranças ruins, vamos começar tudo de novo”. Ele a beijou com todo amor que sentia, desceram para a sala de jantar, ela aprovou toda a preparação, ele puxou a cadeira para ela sentar. No meio da noite, ela o olhou de forma firme, porém leve “Estou grávida e dessa vez é de verdade”, ele pegou sua mão e beijou de leve “Eu sei que sim querida, dessa vez eu sei que sim”.
............Abraçados, ficaram na mesa se acariciando até as velas apagarem.

Jantar a luz de velas - parte V

(...)
............Dirigiu por horas sem fazer nenhuma parada, tinha pressa, para não dizer desespero. Chegou mais rápido do que esperava e apesar de cansado e faminto, ficou paralisado diante da porta. Já havia meses que não a via, aliás, já havia meses que ao menos não conversavam, e ele ficou ali tentando premeditar suas falas e ações, tentando imaginar como ela o receberia e como estaria, pensando principalmente no que aconteceu durante esse tempo e em como seria de agora para frente.
............Colocou a chave e surpreendeu por conseguir abrir, pensou que ela haveria de ter trocado a fechadura, enfim um bom sinal. Tirou seu casaco e o pendurou, deixou as malas no chão, andou pela casa que agora estava vazia e em silêncio. Notou a ausência dos vários retratos que antes estavam espalhados pelo aparador e paredes, percebeu o atelier fechado, teve um breve lampejo de memória sobre aquela noite em que encontrou quartos corpos nus e drogados em sua cama. Abriu as portas, um cheio rançoso invadiu suas narinas.
............Roupas rasgadas, araras vazias, cabides no chão, restos de comida e garrafas sem conteúdo estavam espalhadas sobre o sofá e o felpudo carpete rosa. Notou folhas amassadas jogadas em um canto e, na mesa, vários croquis com rabiscos disformes, a caixa de lápis só continha gizes da cor negra, notou o estilete que ela sempre usava para afinar as pontas, a lâmina estava suja por um material escuro e de cheiro relativamente forte. Desdobrou algumas folhas e tentou decifrar os desenhos, eram praticamente iguais, todos disformes e incoerentes, ao olhar bem visualizou um rosto desfigurado que parecia sentir dor. Ou não era nada disso, ele andava com a imaginação um tanto quanto susceptível.
............Continuou percorrendo o restante da casa, abriu a geladeira e notou que precisaria fazer compras, já que só havia leite, geléia de uva e iogurte de frutas e nos armários cereais e bolachas de doce. Passou pela sala, a TV estava desligada da tomada e, com exceção de poucas coisas, vários aparelhos eletrônicos também estavam fora de seus plugs. Subiu as escadas, foi a seu quarto, sentiu uma pontada de desprezo ao olhar para cama. O closet estava aberto e pode notar que todas as roupas eram brancas, percorreu a mão por diversas delas e todas eram assustadoramente alvas. Saiu e quando caminhou em direção ao corredor pode notar aquele quarto aberto, o antigo quarto do bebê.
............Quando ele lacrou o quarto após alguns meses do acidente, pensou que ela fosse novamente acabar dando um jeito de abri-lo, mas ela não o fez, então esqueceu do assunto, não achou que ela fosse ter uma recaída depois de tanto tempo. Notou que a porta foi aberta sem algum esforço, pois ela usou a chave original que ele havia trancado em seu cofre particular, cofre que ela não tinha idéia da existência, se perguntou como ela havia conseguido a chave.
............Não soube explicar porque, mas sentiu que era melhor entrar no quarto. Tudo estava diferente, a decoração ganhou um tom azul, com o tema de marinheiro, a cortina era listrada, toda azul e branco, havia vários barquinhos pintados na parede, brinquedos e ursinhos de pelúcia ocupavam prateleiras, passou pela poltrona e viu que no carpete ao lado do berço haviam bolas coloridas, olhou ao redor e só então pode perceber várias bolas coloridas, no carpete, embaixo do berço e dentro do pequeno baú. Saiu apressado do quarto e trancou a porta apressadamente.
............Ouviu um barulho vindo do banheiro, dirigiu-se até lá e encontrou sua esposa dentro da banheira, com o olhar perdido e vazio. Chamou-a, mas ela não respondeu, parecia em choque, a água já estava fria e sua pele estava enrugada e com as pontas dos dedos levemente arroxeadas, pegou em suas mãos e não pode deixar de notar uma cicatriz profunda no pulso, olhou na outra mão e havia uma cicatriz idêntica, lembrou-se da lâmina do estilete no atelier. Pegou uma toalha e a enrolou, no quarto a vestiu e deixou-a deitada na cama, desceu e preparou uma sopa instantânea que conseguiu achar na gaveta do armário.
............Subiu com a bandeja para o quarto e a encontrou exatamente na mesma posição que ele a havia deixado. Colocou a bandeja no seu colo e insistiu que ela comesse, como ela não teve reação, começou dar a sopa em sua boca, ela não tinha atitude para fazer algo, mas deixava-se conduzir. Deitou-a e colocou o cobertor sobre suas pernas, se levantou para sair, e então ouviu “Amor, não sei se vai gostar, mas pouco me importa, acho que estou grávida”. Olhou para trás e ela estava sentada e sorria com os olhos vidrados, ela falou exatamente como há vários anos antes quando lhe contou sobre a gravidez. “Tudo bem garotão, conversamos sobre isso amanhã”, aconchegou-se ao travesseiro e adormeceu no mesmo instante. Ele continuou parado olhando ela respirar pesado enquanto dormia.
............Se sentiu fora de sintonia, não entendia o que havia acontecido com ela, a geladeira vazia, o atelier destruído, o quarto do bebê reaberto, os pulsos e agora aquela fala do nada. Sentou-se na escada e chorou, compulsivamente e por vários minutos. Começou a procurar alguma pista que o ajudasse e foi na bancada do banheiro que encontrou vidros de remédios antidepressivos e antipsicóticos, abriu as gavetas e viu várias receitas, olhou o rodapé e verificou o nome e fone do médico, tomou a liberdade de ligar para o consultório. Logo descobriu que o médico era o psiquiatra de sua esposa e marcaram um jantar para o mesmo dia.
............Durante a conversa foi informado sobre praticamente tudo que aconteceu quando estava fora, o consumo de várias drogas e bebidas, as alterações constantes de humor, o declínio social, o afastamento da família e amigos, a venda da marca do atelier para pagar as dívidas, a depressão, a tentativa de suicídio e por fim, crises de pânico e as fugas da realidade. O médico informou que ela não chegou a ser diagnosticada como psicótica durante o tratamento, mas ele concluiu que as ilusões criadas por ela funcionavam como uma válvula de escape para todos os problemas emocionais, quando ele perguntou que tipo de ilusões eram essas, o psiquiatra disse que ela sempre contava sobre a presença de uma criança em seu apartamento.

(CONTINUA)

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Jantar a luz de velas - parte IV

(...)
............Um frio lhe percorreu o corpo, mas já não era sua lembrança, era um arrepio real que o trouxe de volta ao presente, a sua cozinha. Ele se levantou e resolveu começar a colocar as refeições nas devidas travessas. Começou a se sentir idiota por estar fazendo um jantar especial para uma pessoa que talvez não fosse ao menos notar aquilo tudo, há tempos em que na maioria das horas ela estava fora da realidade e isso o fez sentir com raiva. Lavou o rosto na torneira da pia, se acalmando, sabia que era o certo a se fazer, afinal era a data de aniversário do casamento deles e ele não poderia deixar passar isso em branco, por mais que toda situação atual fosse, digamos, delicada.
............Respirou fundo algumas vezes, aquela lembrança dos momentos estranhos que passou na casa de campo sempre o deixavam desnorteado. Ele nunca soube explicar o que aconteceu, sempre culpava sua consciência pesada e achava que foi isso que o fez imaginar coisas, hoje pensava se realmente foi o que aconteceu. Encostando-se na bancada, se transferiu aos poucos para aquela noite na cabana, a noite que ouviu a primeira vez o choro misterioso de um bebê inexistente.
............Era uma noite de verão quente, mas o arvoredo próximo lhe trazia agradáveis brisas frias. Já era de madrugada, ele dormiu lendo um livro em sua cama, com as janelas abertas, de repente se sobressaltou por um barulho vindo do andar superior, não era um barulho como os anteriores, era uma voz, tinha certeza de ter ouvido um choro de criança. Levantou e calçou os chinelos, levou o dedo ao interruptor e logo percebeu que estava sem luz, talvez uma queda breve, tateando as paredes pode ir até a um quartinho abaixo da escada que servia de despensa e conseguiu achar uma lanterna. Tentou acender a lanterna algumas vezes, estava falhando, quando enfim conseguiu firmar o facho de luz, sentiu algo batendo nos seus pés, era uma pequena bola colorida. Abaixou-se para pegar, a lanterna falhou, bateu novamente com ela na mão esquerda e voltou a funcionar, mas a bola não estava mais ali.
............Aquilo não o assustou, estava grogue de sono e não processou direito as informações. Após vasculhar a casa, e não achar nada, voltou para a cama. No outro dia forçou sua mente a tentar lembrar dos fatos, mas tudo vinha em flashs como se fosse um sonho e ele deduziu que talvez realmente tivesse sonhado. Três dias se passaram e tudo estava bem, continuou com sua vitrola e seu francês que agora já estava melhor, a tarde teria uma conferência on line com alguns acionistas e no momento estava preparando uma pauta a ser apresentada. Sentado no sofá, ajustava seu laptop quando, ao olhar pela porta lateral, viu na sombra da pereira um garoto. Ele vestia um macacão jeans, com uma blusa comprida listrada, deveria ter por volta de 2 ou 3 anos, brincava sentado com uma bola colorida.
............Ele achou que aquilo fosse impossível, já que tinha certeza que nas redondezas não havia nenhuma habitação ou acampamento, pelo menos não nos próximos 5 quilômetros. Dirigiu-se até a árvore, o garotinho notou sua presença, levantou e começou bater palmas, muito alegre e de forma levada começou a contornar a pereira. Ele, apesar de gelado, começou a correr e logo que deu a volta na árvore o que encontrou foi apenas a bola colorida, que dessa vez não sumiu. Segurou-a forte e apertou bem para ter certeza que aquilo era real, olhou em volta e não havia como o garoto ter se escondido tão depressa. Não se deixou abalar por isso, ele não sabia explicar, mas decidiu não dar tanta importância, voltou para seu laptop e sua conferência. Decidiu que aquela noite iria jantar fora.
............Voltou tarde e já um tanto embriagado pelo vinho, deitou-se no sofá mesmo. Um grande estrondo o fez quase cair, dirigiu-se a cozinha e viu as portas dos armários abertas e as vasilhas todas no chão, acendeu as luzes de todos os cômodos da casa, mas não havia nada, agarrou-se ao paletó e saiu em direção ao carro. Acordou com o sol forte no rosto e as chaves na mão, meio atordoado, lembrou-se que tentou dirigir, mas deve ter adormecido antes mesmo de conseguir dar partida. Um pouco amedrontado voltou para a casa, foi a cozinha, que estava simplesmente em ordem. Tomou uma demorada ducha quente, tentou manter o controle e achar uma explicação racional para aquilo tudo. Vestiu uma regata e desceu.
............Logo no meio da escada pode ver seu laptop aberto na bancada e janelas sucessivas abriam e minimizavam na tela, aproximou-se, logo as aberturas pararam deixando somente uma notícia em destaque e várias em seu rodapé, ele abriu uma a uma, eram todas notícias de sua esposa, a abertura da boutique, a inauguração de seu atelier, as festas, as viagens, a mais recente se tratava sobre a venda de sua marca e suas inexplicáveis alterações de humor. Sentiu, neste momento, algo sobre sua coxa, desceu o olhar e viu duas pequeninas mãos uma em cada perna, virou-se mas não havia nada.
............Aquele, definitivamente, era o momento de encerrar suas férias. Em menos de 15 minutos já estava com todas as bagagens no carro e se dirigindo para a cidade.
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(CONTINUA)

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Jantar a luz de velas - parte III

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............O auge das brigas aconteceu dois meses depois quando ele resolveu passar a noite em uma despedida de solteiro de um amigo, aliás, uma festa animadíssima como há tempos ele precisava. A boate mais badalada da cidade foi fechada para ocasião, somente bartenders mulheres vestidas com micro blusas transparentes serviam os drinks no bar, vários confortáveis sofás e grandes almofadas ocupavam o local, havia uma passarela central onde a grande atração da noite seria apresentada: strep tease. Porém as stripers não eram profissionais, eram amigas e amigas de amigas, o que tornou tudo mais interessante ainda, todas lindas e muito prestativas, escolhidas a dedo para a animação em questão. Nem se precisa explicar o óbvio, na alta madrugada vários corpos estavam entrelaçados ocupando todos os sofás, almofadas e até a própria passarela.
............Acontece que a animação da festa aparentemente não se restringiu somente a boate, já que quando ele chegou a sua casa encontrou sua cama ocupada por sua mulher e mais duas moças, todas nuas, tendo a seus pés o tal amigo supostamente gay, o design de modas. Estavam dormindo ou apenas chapados, não soube ao certo. Ele chutou os biquínis molhados no chão, pegou o pirex que ainda continha alguns comprimidos de LSD e arremessou pela sacada, puxou uma das mulheres pelos cabelos e foi com toda sua fúria para o design, que dava gritinhos histéricos e com a mão amolecida tentava unhá-lo no rosto, sua mulher estava com as pernas abertas na cama em meio a uma crise de risos.
............Na mesma noite fez suas malas e mesmo sendo ele a sair, ela manteve a pose e pediu para se afastarem um tempo tentando manter a situação em suas mãos. Ele ficou algumas semanas em um hotel e começou a organizar tudo na empresa para um afastamento prolongado. Não soube notícias dela, mas via algumas notas nas colunas sociais sobre seu atelier ou sua aparição em algum lugar.
............Um mês depois se mudou para uma casa de campo, isolada porém linda, muito verde e um lago ao fundo, lindas margaridas floreavam a lateral da casa, que tinha mais a frente um pomar de pêras. De lá controlava algumas ações empresariais e aproveitava o tempo para aprender melhor sobre vinhos, praticar francês e pesca. Não tinha TV, ele fez questão de toda uma forma rústica para aquele lugar que era seu refúgio, seu passatempo preferido era com uma belíssima vitrola que executava mais que perfeitamente as melodias das suas coleções de vinil. Foi neste período que se tornou cozinheiro, tinha tempo e calma de sobra para fazer suas experiências. Os quatro primeiros meses passaram de forma tranqüila, o incômodo veio no quinto mês.
............No começo ele não estranhava alguns barulhos que escutava vindos do andar de cima, eram apenas arranhões, o que ele concluiu ser algum bicho. Mas um dia de madrugada teve a nítida certeza de ser acordado por um choro de bebê.
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(CONTINUA)

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Jantar a luz de velas - parte II

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............Desde o início ele sabia que estava perdido ao conhecê-la, pois quando foram se tornando íntimos soube que seria dela para sempre, se casaram após poucos meses que se conheceram. E esse pequeno fato gerou uma discórdia imensa, foram críticas e mais críticas tanto por parte da família quanto por parte dos amigos, resumidamente diziam que era loucura casar com alguém que mal se conhece e que isso era pedir para dar errado. Hoje ele pensava se não deveria ter dado ouvidos a eles, mas logo afastou o pensamento, sentindo-se um crápula por cogitar essa possibilidade.
............Os dias ao lado dela haviam sido maravilhosos. Ela era tímida, porém de sorriso fácil, falava baixo e acanhado, mas era de opinião muito forte, uma mulher pacata com um espírito aventureiro, essa mistura de opostos simplesmente o deixava maravilhado. Assim a vida não era uma rotina, ele sempre se pegava surpreendido por um pedido ou decisão que ela tomava, por mais que tentasse prevê-la ainda não havia conseguido.
............No final do terceiro ano de casamento e com uma grande promoção em seu emprego, resolveram mudar de apartamento, compraram uma cobertura em um bairro bem localizado da cidade. Ela estava radiante, ele feliz por fazê-la assim. Um dos quartos ela separou para uma decoração especial, fazendo mistério, impossível já que era ele que recebia a fartura do cartão de crédito e assim pode ver todos aqueles nomes de lojas relacionados a artigos de bebês. Ele ficou em júbilo com o fato de ser pai, ela não cabia em si. Ele torcia para ser um menino, ela como qualquer outra mãe queria saúde. Os dias agora se resumiam a brinquedos, livros e exercícios especiais, além da decoração do quarto do bebê, para o qual a cada hora aparecia algo novo, basicamente os móveis e objetos maiores eram de cor neutra, deixaram para decidir a cor principal assim que soubessem o sexo, o que nunca ocorreu já que ela sofreu aborto espontâneo no início do terceiro mês. Ele teve que tirá-la a força do quarto, o qual foi fechado a sete chaves após longos dois longos meses de visitas diárias e constantes, ela praticamente morava lá dentro e ele já não suportava mais vê-la definhando. Trancou o quarto após ter colocado uma fechadura especial, para entrar seria necessário arrombar a porta por completo e ele duvidava que ela tivesse forças para pensar nisso.
............Novas férias foram planejadas, Aspen dessa vez. Roupas, bolsas, sapatos, jóias, tratamentos estéticos, fazia tudo para mimá-la o suficiente. Ele decidiu trabalhar menos, ela focou em seu negócio próprio, o que foi uma medida ótima para todos. A empresa era uma franquia de uma famosa boutique feminina, a clientela que se formou foi a melhor possível. Logo estava se destacando no mercado e grandes contatos apareceram, com apenas alguns meses de trabalho ela resolveu criar sua própria marca, tendo como braço direito um design de modas.
............Agora era ela que parava cada vez menos em casa, ele estava satisfeito em tê-la feliz novamente, sua jovialidade estava presente com toda força, bem como o cigarro e a bebida. Grandes reportagens, editoriais, desfiles e eventos foram acontecendo, e cada vez mais ele se via aprofundado no mundo do glamour, com modelos ainda meninas que mal saíram das fraldas andando semi-nuas pelo atelier particular que ela montou em casa. Meninas tão mulheres que ele se assustava, tão charmosas e maliciosas como se fossem totalmente experientes, se insinuavam para ele sem o menor pudor, se exibiam entre uma troca de roupa e outra, caminhavam até a cozinha com os pequenos seios a mostra. Ela não via, ou se via não se dava conta do que estava acontecendo, seu foco era em qualquer nova peça que seu aflorado amigo design a fazia experimentar, sempre ajustando um pouco de tecido entre uma alisada de mão e outra pelo seu quadril ou cintura, aquele amigo tão manipuladoramente sutil sempre acoplado com seus enfeites de linha e agulha. Logo eram evidentes as medidas desregradas, as horas invertidas e as drogas demasiadas, tudo de forma tão natural que ele começou a se perguntar se já não estava velho demais. As brigas entre os dois começaram de uma forma intensa, ela reclamava da falta de apoio e atenção, dizia que ele se tornava sisudo e careta, ele não aceitava a nova vida que ela levava, vadia e sem limites.
............O toque do telefone o fez voltar ao presente, acordou, mas não quis atender, olhou ao redor, tudo agora era tão escuro e vazio. Sentado na cadeira, rolava uma maçã de uma mão para outra. Tentou se recordar quanto tempo durou aquela fase, e o que vinha em sua mente era somente os seios nus e risadas fáceis das lindas ninfetas e da mão macia do design se enroscando no quadril de sua esposa.

(CONTINUA)