quarta-feira, 27 de agosto de 2008

O normal

............A janela do quarto estava semi-aberta e o ar quente e seco entrava mansamente. Ela estava sentada na cama, vendo um programa qualquer na TV enquanto fumava seu último cigarro. “Vou parar com isso, esse é o último”, dizia sem muito crédito para si mesma. As contas estavam acumuladas, o seu telefone não tocava mais e agora estava desempregada, sentia-se entorpecida, mas pela primeira vez reparou que sua respiração era tranqüila, nunca reparara nisso ou talvez nunca tivesse sido assim.
............Lá fora o mundo continuava com sua rotina monstruosa. No seu apartamento o mofo nas paredes denunciava a infiltração, tudo estava como sempre foi, desprezível, lá dentro as mesmas coisas, os mesmos problemas e ela, sempre a mesma, sempre.
............Deu mais uma longa tragada, deitou na cama cobrindo seus olhos com as mãos, então percebeu que o canário do visinho parou seu canto, olhou pela janela e o semáforo da esquina estava verde, mas os carros não ultrapassavam. Olhou uma senhora que caminhava com seu cachorro, a bola de brincar estava suspensa no ar. Ela franziu a testa, resolveu descer, chamou o elevador e esperou prováveis cinco minutos, nada, resolveu ir pela escada, o prédio parecia estar vazio. Na rua tudo estava estático. O sorvete derretia na mão de um garoto, a sirene da ambulância soava muda, as garotas que brincavam de pular corda estavam com o mesmo sorriso petrificado.
............Ela concluiu que o que vivia lá dentro, escapou para fora. Sentou no capô do carro da viatura e enquanto as luzes vermelhas passavam por sua face, decidiu. Subiu os quinze cansativos lances de escada, tomou um banho gelado e fez um lanche rápido, colocou pequenas e essenciais coisas em uma mochila. Esvaziou guarda-roupa, armários, estante e colocou tudo no centro da sala, molhou o monte e mais algumas partes do apartamento com o tinner que restou da última reforma. Colocou a mochila nas costas, amarrou o tênis e acendeu mais um cigarro. “E se eu não quiser que seja o último?”. Jogou o fósforo acesso na sala.
............Enquanto as chamas engoliam o andar, as cinzas desciam no asfalto, algumas mulheres voltavam das compras, outras iam, crianças rodavam até ficarem tontas e riam na sua brincadeira sem fim, homens comentavam sobre o calor.
............Tudo tinha voltado ao normal e ela estava longe, muito longe dali.

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