quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Na casa da Velha

............E quem disse que vida boa é essa igual propaganda de margarina onde aparece a família feliz? Cada um tem sua forma de ser, aceite isso. Quem me ensinou essa lição foi uma senhora, uma velha muito peculiar. Ora, mal cheguei e já comecei a falar pelos cotovelos sem ao menos me apresentar, desculpe-me, sou Jorge.
............Nesta mesma data, há três anos atrás, conheci uma velha, isso mesmo, não consigo usar outra expressão, ela era uma pessoa ranzinza e recalcada que cheirava como bolor de roupa úmida guardada. Não me recordo o nome dela, porém isso não tem a mínima importância, então vou tratá-la como Velha. Voltando ao que importa, encontrei pela primeira vez com a Velha num dia em que estava voltando do trabalho, ela estava sentada na praça, sozinha, murmurando coisas com o nada, quase bati o carro distraído, ela tinha fama de abilolada na região, eu rezava para nunca acabar daquele jeito.
............Mas o que de fato interessa aconteceu depois, num domingo de manhã, quando a vi sentada na escada em frente a sua casa, gentilmente me aproximei e perguntei se ela necessitava de algo, o olhar que ela ergueu foi vazio, como se estivesse vendo através de mim, em algum momento me perguntei se a idade estava castigando a sua visão, então ela respirou fundo e disse sussurrando “Quando existem pendências, elas devem ser resolvidas”, perguntei se ela queria ajuda para entrar, ela com o olho fixo no gramado da casa lateral respondeu com uma firmeza abrupta “Ainda não é o momento certo para isso”, voltou a me encarar “Mas se você quiser pode ir entrando, já está muito atrasado”, eu sorri e ao mesmo tempo senti uma pena imensa daquela senhora, ela não me conhecia e com toda certeza já não tinha muita noção de realidade. “Tenho sim”, ela respondeu se levantando. Senti um calafrio na nuca. “Agora já posso entrar, mas você perdeu sua vez por hoje, volte depois, você é aguardado”, se virou numa agilidade estranha para sua idade e entrou batendo a porta quase no meu nariz.
............Passei o resto do dia sobressaltado, por causa daquela velha excêntrica. Mas não perdi muito tempo com isso, até porque estava preocupado com outras coisas, fui expulso da faculdade por invadir o sistema central, minhas contas estavam vencendo, tinha pedido demissão durante uma briga com meu chefe, minha melhor amiga era minha grande paixão desde a infância e agora estava namorando meu irmão, não suportava ficar perto da minha mãe porque ela vivia inventando doenças. Naquele momento eu só queria abandonar tudo, não via solução, planejava ir para o Exterior. Ah, esqueci de falar do meu pai, ele era um imbecil, que vivia bebendo e traindo minha mãe, quando éramos criança nos surrava até quase desmaiarmos, mês passado ele não deu mais as caras aqui em casa e em lugar nenhum, a opinião geral era que ele havia fugido com alguma vadia, mas eu sabia que não, sabia que ele não estava mais vivo e tinha essa certeza porque fui eu que dei o tiro na testa dele e depois me livrei daquele corpo gordo em um matagal. Como podem ver, minha vida é um pouco bagunçada.
............Pelo menos em uma coisa aquela velha tinha razão, temos que resolver nossas pendências e eu tinha uma comigo mesmo, tinha que viver realmente. Na outra semana estava com as malas prontas e muito ânimo, fui ao mercado comprar umas últimas coisas e passei pela casa da Velha, parei e reparei que ela me olhava por uma fenda da porta que não estava totalmente fechada, subi o lance de escadas e empurrei a porta.
............A casa era muito abafada e sem iluminação, tinha um cheiro de bolor assim como a Velha, entrei na casa, procurando-a. “Você tem que brincar”, mas não era a voz da Velha, olhei para trás e vi uma menina que deveria ter uns quatro anos no máximo, estava com um vestido tão alvo que em meio aquele lugar escroto, ela parecia surreal, as duas tranças estavam presas por laços de cetim igualmente brancos, a confusão estava estampada em meu rosto, “Como disse, é melhor você apressar seus passos meu jovem e para resolver as coisas você tem que brincar”, arregalei os olhos mediante a eloqüência daquela criança. “Não adianta fugir, não adianta esconder, não adianta discorrer, você só vai se perder” ela começou a cantarolar essa frase, girando o corpo nos calcanhares. Encostei-me na parede e olhei para lateral, para meu alívio a porta estava muito próxima, andei três passos e alcancei a maçaneta, uma pequena mão fria pousou sobre a minha e cravou suas unhas. “Você só sabe reclamar e correr, maricas!!!”, não que fosse fazer isso, mas minha vontade era de chorar, foi como ouvir meu pai, ela soltou minha mão e caminhou em direção a sala, olhou para mim com o olhar mais doce possível “Pela última vez, brinca comigo?”
............Não senti quando meus pés foram em direção a ela, demos as mãos e ela me conduziu para a escada. “Fique calmo, tudo vai resolver, agora você tem que escolher, quer subir ou descer?”, senti que aquela pergunta tinha uma importância muito maior que a própria direção a ser tomada, olhava em volta para buscar algo que me ajudasse, me ouvi dizer “Quero ficar onde estou”, ela se iluminou e deu um pulo de alegria “Ótima escolha meu jovem, ótima escolha! Vamos resolver aqui mesmo, sem precisar de muitas mudanças”. Fomos para a sala de estar, havia um baú retangular e muito grande, “Não é um baú”, disse a pequena, reparei em um conjunto de alças laterais e uma cruz acima, no centro. A menina abriu e vi a Velha deitada com as mãos sobre o peito, reprimi um grito, “A Velha gosta de descansar aqui”, mas o rosto dela estava pálido e os lábios arroxeados, de repente ela se levantou “Ora, até que enfim!” disse para mim sorrindo, depois virou para a garota “Pegue logo o que tem que pegar e me deixa sossegada”, a garota retirou uma caixa debaixo dos pés da velha e fechou o caixão ou o que quer que fosse aquilo.
............Minhas pernas estavam bambas e eu mal conseguia respirar, a menina foi em direção à cozinha, a segui, pois queria um copo d´agua. Na mesa estavam sentadas mais quatro crianças, mais três meninas da mesma idade que a menina da Velha e um menino que na verdade era um bebê de mais ou menos um ano. A menina retirou alguns bonecos da caixa e os colocou sobre a mesa, foi até ao fogão, puxou uma cadeira e subindo nela, destampou o pequeno caldeirão no qual borbulhava um líquido alaranjado. “Então agora vamos resolver tudo”, eu me sentei, as outras crianças tomavam leite e comiam biscoitos, eretas e com o olhar fixo no horizonte. Eu não sei por que, mas comecei a falar sem parar, não conseguia ficar em silêncio, contei do meu emprego, da minha mãe, meu irmão, minha amiga, enfim, tudo. “Esqueceu do seu pai”, a menina disse, já sentada no meu colo.
............Senti lágrimas descendo do meu rosto, era a primeira vez que chorava por aquilo, “Eu sei, eu sei, foi tudo muito ruim não foi, meu rapaz? Mas fique calmo”. Ela desceu, juntou os bonecos, colocou-os no braço e os ninou, dois deles foram jogados dentro da panela, um ela colocou para dormir em uma cama fofa de farinha de rosca, ela pegou um punhal dentro da gaveta e cortou os cabelos do outro boneco, retirou as fitas de cetim das suas tranças e então reuniu novamente todos os bonecos. Ela os juntos e amarrou com uma das fitas, a outra ela amarrou no punhal, olhou para todos e deu aquela espécie de ramos bonecos para o bebê brincar. “Você quer logo sua felicidade?” ela perguntou para mim, fiz que sim com a cabeça, ela sorriu e disse “Tudo bem”, seu olhar mudou para algo maquialévico, então ergueu o punhal, levantei da cadeira num sobressalto e antes mesmo que pudesse fazer algo, a menina passou o punhal pelo pescoço do bebê, fazendo com que uma larga camada de líquido vermelho caísse sobre os bonecos.
............Caí de joelhos, em meio a um berro e com as mãos tapando meus olhos. “O que é isso Jorge?! Está maluco?”, retirei a mão do rosto e pude ver minha amiga vestida de noiva na minha frente, olhei e reconheci uma igreja, minha mãe estava do meu lado segurando meu braço e entre os convidados havia um murmurinho. Meu pai e meu irmão estavam na primeira fila tentando segurar o riso. Estava muito zonzo, pedi desculpas e a cerimônia do meu casamento reiniciou, mas meu pensamento estava muito longe dali, não conseguia entender. Escutei o padre me fazendo uma pergunta e minha noiva me olhava alegre, mas não conseguia responder, então ouvi a voz infantil de uma das damas “Você quis a felicidade e agora não sabe dizer sim para ela?”, olhei para trás, era a menina da Velha, ela sorriu “E então? Você quer logo sua felicidade?”, respirei fundo “Sim”.
............A igreja se encheu em aplausos.

Um comentário:

Anônimo disse...

Esse foi de arrepiar! mto bom!