quinta-feira, 20 de agosto de 2009

A colheita dos morangos

..........Estava sentada debaixo do pé de manga refrescando os pés na represinha quando vi o carro se aproximando. Era final de tarde e havia achado que eles não viessem, já estávamos a quase quatro dias na fazenda e nada deles, mas enfim vieram só para o final de semana. Foi aquele alvoroço na casa, tia Marina correu ao encontro de Naninha e lhe puxou a orelha por terem demorado tanto, meu pai ralhava com o Célio por eles ao menos não telefonarem. Estávamos reunidos na fazenda da família para o nosso evento anual: a colheita de morangos.
..........Todo ano era assim, a família se reunia por volta de uma semana pelos morangos. As tarefas se dividiam em duas partes, a primeira era a colheita e depois era hora da produção onde fazíamos geléias, doces, bolos e às vezes até licores. Não era questão apenas de ser necessário ou lucrativo, além de ser gostoso tanto no paladar quanto na ação, a verdade era que a época da colheita do morango era uma espécie de confraternização, mais importante que qualquer aniversário, natal ou ano novo.
..........Sacudi do vestido um punhado de terra e fui ao encontro de minha irmã.
..........- Sua desnaturada! Foi só casar com esse inútil do Célio que nos esqueceu.
..........Célio sorriu maroto enquanto retirava as malas do bagageiro.
..........- Ah Dora, como sempre dramática! - divertiu-se ela.
..........Deu-me um longo abraço e depois um beijo de estalo nos lábios. Meu pai torceu o nariz.
..........- Já disse que isso é nojento. Vocês são mulheres e ainda por cima irmãs. Quando vão parar com essa besteira de beijo?
..........Desde criança eu e Naninha sempre fomos unha e carne, tínhamos cumplicidade, amizade, zelo e um carinho extremo, carinho este que era motivo para a implicância de meu pai. Dizia ser desnecessário e desrespeitoso, nunca entendi tanto alvoroço por uma coisa tão inocente. Ele passava os dias a falar ou gritar, colocava-nos de castigo, mas quando viu que as palmadas já não adiantavam, desistiu, isso no final de nossa adolescência.
..........De filhos éramos só nós duas, provenientes de uma mesma gravidez complicada, somos gêmeas bivitelinas. A única coisa que temos de semelhante é o amor que temos uma pela outra e nossos olhos, grandes e amendoados. Naninha é mais clara e tem cabelos louros escuros, com grandes cachos nas pontas, é linda e quando criança parecia uma pintura. Minha estatura é menor, a pele tem um bronzeado natural, cabelos um pouco mais escuros e extremamente lisos, corpo com grandes curvas. De personalidade também não somos idênticas, sempre fui mais atirada que Naninha, desde criança era impulsiva e expansiva, gosto de ser alegre, de festas e saídas. Minha irmã era um pouco mais contida, não chegava a ser tímida, mas discreta, ela preferia os romances e tecidos de ceda cor de rosa.
..........Sou a mais velha, dois minutos, porém mais velha. Acho que por isso tomei para mim a responsabilidade de cuidar e proteger minha irmã, sempre foi assim, mas isso se acentuou mais desde o falecimento de nossa mãe, o que aconteceu durante um sábado de manhã.
..........Lembro que era final da manhã e estávamos voltando da aula de música, discutimos durante o caminho, pois Naninha andava muito devagar, eu queria chegar logo em casa, íamos almoçar fora. Já na esquina percebi tudo.
..........- O carro da tia Zélia está na porta, ela vai com a gente? – disse Naninha.
..........- Não sei – respondi já sabendo que não haveria mais almoço algum, tia Zélia nunca ia a nossa casa e aquilo só poderia significar algo ruim.
..........Quando estávamos quase no portão, tio Carlos estacionou apressado seu carro.
..........- Oi meninas, e então, vamos almoçar?
..........Naninha correu e deu um pulo em tio Carlos, era nosso tio preferido, sempre nos ensinava coisas que nossos pais morreriam se soubessem. Ele tinha um sorriso no rosto, era um sorriso frio que parecia pedra. Mantive-me parada.
..........- Não. Quero entrar, tenho que falar com minha mãe.
..........- Dora, é melhor irmos almoçar, depois você entra em casa.
..........- Não, vou entrar agora!
..........- Depois – disse ele forçando-me a entrar no carro.
..........Naninha tinha a cara sonsa de quem não está entendendo nada. Ele nos levou a uma lanchonete e pediu bastante batata frita e milk shake duplos, mas não comeu nada, disse que estava controlando o colesterol. Enquanto minha irmã se esbaldava, eu não conseguia tirar os olhos de tio Carlos.
..........- O que foi agora Dora?
..........- Quando você vai contar? – desafiei-o, enquanto ele tentava permanecer calmo.
..........- Termina de comer sua batata.
..........- Contar o que? – disse Naninha curiosa – Ah, tio, vai, conta!
..........- É tio, conta logo que nossa mãe morreu.
..........Minha mãe estava com câncer, já tinha feito inúmeros tratamentos e estava se “recuperando em casa”, hoje eu sei que não havia mais nada que se pudesse fazer em seu caso. Enfrentei melhor que Naninha, ela chorou muito por muitos meses, não conseguia dormir sozinha e não tinha vontade de sair de casa, me afastei um pouco de todos para fazer companhia a ela. Na época meu pai também se afastou, como se estivesse em algum mundo particular. Agora isso não importava mais.
..........- Anda logo com isso Célio – Naninha estava na porta do quarto com a mão na cintura. Ia sair, mas voltou para ajudar o marido a terminar de desfazer as malas.
..........- Não sei para que isso – comentou tia Zélia – tirar para depois colocar tudo de novo – Vem logo aqui para baixo, vocês dois – gritou, depois foi para a cozinha.
..........Da sala pude ouvir a conversa dela com Paloma, a esposa do tio Carlos.
..........- Está sim, é só olhar. Naninha sempre foi lisa, e se você reparar bem lá, está ficando arredondada.
..........- Zélia, não começa, não começa a colocar coisa onde não tem.
..........Comecei a namorar antes que Naninha. Tinha 16 anos quando perdi a virgindade, ela foi a primeira a saber, pensei que ia falar um sermão, mas pelo contrário, a curiosidade típica da minha irmã falou mais alto, queria saber de todos os detalhes, quanto mais eu contava mais ela perguntava. Depois que passou a curiosidade Naninha mudou comigo, passou uma semana emburrada, me dava respostas truncadas, evitava conversas comigo.
..........- Me empresta aquela sua blusa verde?
..........- Não.
..........- Mas porque não? O que tem demais?
..........- Vou usar.
..........- Não vai nada, vi que você separou aquele vestido azulado.
..........- Não vou emprestar porque eu não quero, entendeu? E sai daqui de perto, está me atrapalhando.
..........- Naninha que foi que eu te fiz? Porque anda tão mal humorada?
..........- Mal humorada?! Ah, desculpe Srta. Alegria, desculpe estragar seu dia com o meu mau humor. Porque você está aqui ainda se incomodando com minha presença? Vai logo encontrar com esse seu mais novo amiguinho – ela já estava aos prantos.
..........- Ah não, ciúmes Naninha?
..........- Enquanto você se deita com quem você quer, eu nunca nem beijei na boca.
..........Então era isso, ela nunca havia beijado. Abracei-a, ela chorou no meu ombro, afaguei seus cabelos e deitei-a em minha cama, sentia-me tão bem com ela tão próxima a mim, deixei de sair e resolvi passar a noite com Naninha. Pela manhã, ela era outra, aliás, era a linda Naninha de sempre, porém com um ar de moleca custosa que a fazia brilhar ainda mais.
..........- Já estamos indo pessoal, se apressem.
..........Peguei meu chapéu e Naninha que já estava do meu lado passou a mão na minha cintura. Célio ficou mais atrás, observando. Bonito o Célio, além disso, bem apessoado e moralmente inquestionável, o marido perfeito para a esposa perfeita, eles juntos eram o casal modelo. Estavam casados há apenas um ano e, portanto, ainda na boa fase.
..........- Você sumiu de mim – disse fazendo beiço, enquanto ela colocava morangos na minha cesta.
..........- Desculpe Dora. Admito que sumi um pouco, mas é o trabalho, e ainda tem o Célio que vive pedindo atenção, tem dia que me sinto tão exausta e sufocada. Sinto tanto sua falta. Me perdoa?
..........- Só se me der esse morango – Ela riu, e colocou um grande e vermelho morango entre meus lábios. Passou a mão pelo meu rosto e se aproximou, que lindos olhos eram os dela, colocou o dedo no canto da minha boca para secar uma gota, e o passou pelos meus lábios.
..........- Os morangos esse ano estão melhores do que nunca – disse tio Arnaldo se aproximando, olhava-nos com ar duro.
..........- Sim tio, estão sim – Naninha se levantou e foi procurar por Célio.
..........Continuei colhendo os morangos enquanto via Naninha se afastar, tio Arnaldo também saiu, mas podia sentir seus pensamentos pesados.
..........Vi Célio colocando Naninha entre suas pernas, sussurrando coisas em seu ouvido e ela rindo baixo, enquanto colocava uma mecha de cabelo atrás da orelha. Tentei reparar na barriga de Naninha, mas para mim estava lisa como sempre, não sei por que mas de certa forma fiquei aliviada, foi apenas mas uma das coisas que percorriam a imaginação criativa de minha tia. Célio me viu olhar e passou as mãos pelas pernas de Naninha, como a tentar me provocar, senti minha face ruborizar “Que atrevimento desse sem noção”. Quando ele subiu as mãos para a metade das coxas e tentou colocá-las dentro do vestido, deixei tombar minha cesta de morangos.
..........- O quarto não fica muito longe daqui, não acham? – disse repreendendo-os.
..........Naninha ficou desconcertada e quando percebeu que Célio estava com um sorriso zombeteiro no rosto, começaram a discutir.
..........Célio sempre foi o homem perfeito, mas não nos demos bem desde que o vi a primeira vez, essa perfeição toda dele não me convencia, ele percebia isso, pois de uma forma ou outra procurava me implicar.
..........Ele saiu pisando duro da colheita com a cesta pela metade, Naninha torceu o nariz e veio me ajudar com os morangos.
..........- Qual é o problema dele? Porque ele me implica tanto?
..........- Achava que ele tinha ciúmes de você, hoje não tenho tanta certeza.
..........- Como assim?
..........- Nada – ela ficou com o olhar trêmulo.
..........- Como assim? – perguntei já desconfiando da resposta.
..........- Acredito que é puro despeito, orgulho ferido mesmo.
..........Continuamos colhendo os morangos em silêncio.
..........Quando Célio e Naninha começaram a namorar, logo começaram os problemas. Confesso que fui eu que comecei as implicâncias, tinha ciúmes de Naninha, ela não era mais a mesma, tinha se tornado impetuosa e independente de um momento para outro. E havia o Célio, o perfeito. Tinha certeza que ele não era nada perfeito, não o suficiente para minha irmã. Foi durante um retiro que tive minha certeza, eles já estavam noivos, prestes a se casar. Enquanto Naninha se concentrava em seus trabalhos com o grupo da igreja, encontrei Célio fumando escondido nos fundos do acampamento.
..........- Naninha não sabe que eu fumo, por favor, não conte.
..........- É claro que não Célio, e estragar sua imagem de bom moço?
..........Aproximei-me dele, tinha acabado de sair de um banho de rio e estava com a saída de banho molhada. Passei a mão pelo seu pescoço e nos encostamos em uma das árvores.
..........- Afinal Célio, você é perfeito em tudo, não é?
..........- Mais do que você imagina.
..........Quando estávamos vestindo nossas roupas, Naninha chegou. Ele gaguejou, eu a olhei vitoriosa, ele não era o homem que ela pensava e eu havia acabado de provar tudo. Naninha me olhava com cara de medo, não era raiva, era medo. Ficamos sem conversar durante um mês, Célio às vezes me ligava para tentar algum novo encontro, sentia nojo, sempre que podia humilhava-o de todas as formas. Ficamos sabendo do casamento deles dois dias depois de terem assinado os papéis, meu pai se sentiu magoado pelo casamento ser apenas no cartório e por não avisarem ninguém. Pela primeira vez Naninha não se importou nem um pouco, ainda estava magoada. Alguns dias após saber da notícia do casamento fui a casa dela, esperei Célio sair para o trabalho e entrei.
..........- O que você está fazendo aqui?
..........- Naninha, já tem mais de mês que não nos falamos, precisamos conversar...
..........- Não, não precisamos – ela subiu para o banheiro, e antes que fechasse a porta, eu a segurei.
..........- Eu fiz aquilo só para você ver quem ele é de verdade, não é homem para você, mas não adiantou nada não é? Você se casou com ele e escondida! O que você tem na cabeça, será que não entende?
..........- Quem não entende é você Dora, o problema nunca foi o Célio.
..........- E qual é o problema então?! – a culpa estava me consumindo.
..........- O problema é você preferir ele a mim!!!
..........- Não Naninha, nunca, não é isso. Eu fiz isso por amor à você, nunca senti nada pelo Célio, ele vivia me ligando, se eu quisesse ele eu já teria. É sério, eu simplesmente não queria que vocês se casassem, é isso – sentei no corredor e chorei, ela ficou parada algum tempo, depois se abaixou e ergueu minha cabeça.
..........- Você jura? Você tem certeza que foi por este motivo?
..........- Juro Naninha, juro. Não suporto ver você com uma pessoa que sei que não é o que você merece.
..........- Dora, fique calma – Ela me abraçou sorrindo – Está tudo bem agora, não dê a importância que o Célio não tem. Vamos passar uma borracha nisso.
..........E agora durante a colheita, ela falava no despeito do Célio, não entendi se ela simplesmente explicava a situação ou se era mágoa. Senti vontade de falar, de ajoelhar, de dizer tudo o que meu coração pedia, de trazê-la para perto novamente.
..........- Terminamos, vamos? – disse ela se erguendo e indo para casa.
..........A cozinha estava a mil, todas as nossas cinco tias conversavam ao mesmo tempo. Na varanda os tios e meu pai reunidos tocavam viola e bebiam cachaça. Os primos mais velhos fizeram uma rodinha e jogavam truco, os mais novos corriam pelo gramado. Pude ouvir uma discussão abafada no andar de cima, era Célio e Naninha, fiquei parada na escada tentando escutar algo, só conseguia ouvir frases soltas, algo sobre mim e a Naninha, algo sobre mãos e coxas, algo sobre beijos. Ninguém notou nada e o restante do dia ocorreu de forma normal, a casa cheirava a morangos.
..........Um pouco depois estava encostada na soleira enquanto raspava o fundo da panela suja de chocolate. Vi Célio me encarando, ele me olhava com desprezo, podia sentir a raiva pulsando na veia de seu pescoço. Sorri para ele, que saiu pisando duro. Naninha que viu, começou a rir.
..........- Você não tem jeito.
..........Como o de praxe, passamos o restante do tempo na cozinha e ficamos entre panelas até a hora do jantar, após a ceia todos se prepararam para dormir.
..........A noite estava quente e eu estava em meio à outra crise de insônia, desci para pegar um pedaço da torta de morango. Havia alguém no sofá da varanda, cheguei mais perto e puxei o fino lençol, era Célio. Estava em sono profundo, usava apenas uma bermuda gasta que deixava a vista sua barriga estruturada. Aproximei-me de seu rosto e pude conferir que sua respiração estava pesada. Levantei e afastei-me mansamente.
..........“Naninha está sozinha” – pensei.
..........Subi as escadas e encontrei a porta do quarto somente encostada, quando abri a vi sentada na cama.
..........- Demorou. – disse-me sorrindo.
..........- Você não me avisou nada. Agora que vi Célio dormindo lá embaixo.
..........- Pensei que você tivesse percebido hoje à tarde.
..........- Quando você se casou com ele, meu coração doeu tanto, você o preferiu a mim.
..........- Quando naquele acampamento eu vi você e Célio indo para trás das barracas, acompanhei tudo, vi quando ele tirou sua blusa, vi quando ele ergueu suas pernas. Observei seu rosto, sua respiração. Meu coração também doeu tanto.
..........- Pensei que você houvesse me perdoado por isso, já expliquei...
..........- Dora, preste atenção, nunca senti raiva. Meu coração doeu de medo – me lembrei da expressão dela naquele dia – foi você que preferiu o Célio a mim, senti tanto medo em te perder para ele.
..........- Nunca Naninha...
..........- Ele é melhor que eu?!
..........- Nunca Naninha.
..........E como há anos atrás, abracei-a, mas dessa vez fui eu que chorei em seus ombros. Ela me afagou os cabelos e me levou até sua cama, a sensação de estar próximas novamente me fazia tão bem, e então foi que ela resolveu passar a noite comigo.
..........Quando a madrugada começou a clarear, notei alguém espiando pela fresta da porta, era Célio. Perguntei-me se ele havia chegado naquele momento ou se havia ficado olhando a noite toda, torci para que ele estivesse ali durante a noite inteira. Dessa vez fui eu a sorrir zombeteiro, enquanto me enrolava nas pernas de Naninha.
..........Pela manhã enquanto alguns faziam as malas e Célio já estava na estrada há muito tempo, Naninha e eu molhávamos os pés na represinha enquanto comíamos morangos.

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