sexta-feira, 21 de agosto de 2009

O Diagnóstico

............- Mas não é possível, deve haver alguma coisa que possamos fazer.
............- Sinto muito Sr. Frederico.
............- Sente muito?! Quem vai morrer sou eu e você fala que sente muito? Existem tantos tratamentos, tantos recursos...
............- Sr. Frederico, logicamente o Sr. pode procurar uma segunda opinião. Mas, infelizmente, seu estado é terminal, já está avançadíssimo, não há nada que se possa fazer.
............- Mas eu não sentia nada, só agora apareceram esses sintomas e mesmo assim, leves, nunca achei...
............- É uma doença silenciosa.
............Frederico saiu do consultório do Dr. Miguel e sentia-se entorpecido, todos falam que quando se recebe esse tipo de notícia as imagens passam a mil na cabeça, mas ele estava vazio, não conseguia se lembrar de nada, não conseguia pensar em nada.
............Saiu do consultório gelado pelo ar condicionado e o sol forte cegou-lhe momentaneamente, o mormaço seco invadiu-lhe o corpo e sentiu-se tonto, massageou as têmporas. Atravessou a rua para comprar uma aspirina, sua cabeça latejava. Voltou e sentou-se na praça, acendeu um cigarro.
............- Isso não faz bem para saúde – disse uma voz.
............- Não faz a menor diferença agora – e olhou para o homem gordo que estava sentando ao seu lado com o rosto de surpresa.
............- Desculpe, não foi grosseria, é que realmente isso não faz diferença, entende? Não vai fazer a mínima diferença – e desatou a rir, gargalhou tanto até se engasgar com a própria saliva e o homem gordo ter que dar-lhe tapas nas costas.
............- Melhorou? – perguntou o homem após abaixar seus braços.
............- Na verdade, acho que não. – passou a mão pela barba que começava a crescer, os olhos estavam perdidos.
............- Eu te vi no consultório. Más notícias?
............Ele reparou no homem gordo, realmente seu rosto era familiar, era isso, ele era um dos pacientes na sala de espera do Dr. Miguel.
............- Péssimas.
............O homem se chamava Paulo, ao contrário dele, a notícia tinha sido muito boa. Ele precisou ser internado as pressas, suspeitavam de uma doença mais grave, fez exames e descobriram que o problema era leve, marcou-se uma cirurgia, procedimento simples, para o próximo mês.
............- Estou sentindo dores, mas ele passou alguns remédios, disse que não é nada demais.
............Ele não queria conversar, aquela simpatia estava o deixando sem paciência, sentiu a cabeça latejar ainda mais. Com ele tinha sido tudo ao contrário. No começo foram leves incômodos, foi ao médico por insistência de sua namorada, fez inúmeros exames, pensaram ser coisa não grave, mas hoje acabou descobrindo que nenhum remédio, tratamento ou cirurgia tinham algum valor para seu caso. O médico falou que agora era esperar. Frederico sorriu, “Esperar”, que coisa mais sombria de se fazer, esperar a morte.
............Eles conversaram mais um pouco, Frederico falou que há uma semana havia trocado de carro, um planejamento de meses. Paulo abriu a carteira e tirou do bolso uma foto dobrada. Era uma menina de pele chocolate, olhos negros que lembravam jabuticaba, no cabelo haviam inúmeras e pequenas trancinhas, segurava uma boneca de pano na mão. Segurando-a no colo estava uma mulher alta e muito bonita, com um grande sorriso. Frederico pode sentir o amor e orgulho que Paulo tinha por sua família, e foi o único momento naquele dia que pode sentir-se em paz, ficou feliz por Paulo estar bem.
............Frederico ficou por mais algumas horas sentado no banco após Paulo ter ido embora, debruçou-se sobre os joelhos olhando para não sabe o que. Conferiu o celular e havia oito chamadas perdidas, não quis saber quem foi, provavelmente seu chefe.
............“Agora posso mandá-lo para onde quiser”
............Mas também não tinha ânimo para isso. Deixou seus próprios pés lhe guiarem até sua casa, ele sempre pensava melhor enquanto andava. Passou pela igreja, um homem de terno e gravata lhe entregou um jornal e lhe explicava sobre os horários e atividades da semana, no alto do jornal estava escrito “A cura para todos os males”, pensou em entrar, mas não foi a falta de coragem que o impediu, foi a vergonha, se sentia em débito com os céus há tempos.
............Destrancou a porta do seu flat, enquanto ouvia o casal de vizinhos brigando. Lá dentro tudo era uma bagunça. A TV estava dando as notícias do dia, ele novamente havia a esquecido ligada, blocos de papéis estavam abertos na mesa ao lado de algumas folhas rasgadas, havia roupas sujas no chão e poucas roupas limpas no closet. A geladeira estava vazia e ele sentia fome, caixas de pizza estavam sobre a pia e ele sentiu que teria que pedir outra novamente. Pegou uma cerveja no armário e sentou-se na varanda, sorveu o líquido que estava quente enquanto desabotoava a camisa.
............Realmente não sabia o que fazer e não tinha a mínima vontade em pensar no que fazer. Não voltaria mais ao emprego, foi sua primeira decisão. Lembrou-se que não ligou para sua namorada o dia todo, e notou que ela também não havia ligado mesmo sabendo que ele tinha ido receber uma resposta do médico. Já fazia muito tempo que ela andava distante, ele já havia pensado antes que ela estava tendo um caso, agora sentado ali na varanda ele tinha certeza.
............De repente seus pensamentos se tornaram claros, conseguia ver coisas que não via há muito tempo. Percebeu que a namorada tinha um caso com o seu primo, mas não se importou com isso, já havia pensado em terminar com ela, estava namorando por conveniência. Percebeu que sua mãe o ligava sempre e esse sempre era porque precisava de dinheiro. Tentou se lembrar de algum amigo que era presente, lembrou-se das farras, cervejas, mulheres, mas não se lembrou de nenhum que apenas se satisfazia com conversas ou o ligava para saber como estava sua vida.
............Pensou que ele também era mesquinho e sovina. Mas o que não se podia negar era que ele havia trabalhado muito, tinha um flat em um apartamento de luxo, suas roupas eram de boas marcas, o carro em sua garagem era zero e do ano. Era só com isso que ele se importava realmente, talvez não tivesse pessoas ao seu lado que lhe dessem algum valor porque ele também não valorizava nada do que não lhe trouxesse lucro de alguma forma.
............Lembrou de sua infância e do cheiro de chuva. Sempre que chovia saia para colocar barcos de papel em poças d´agua, naquela época ainda poderia haver algum tipo de sentimento verdadeiro, era uma época onde as coisas eram mais puras. Teve vontade de comer bolinho frito que sua avó fazia, tentou pensar em algum lugar que pudesse vender isso, mas concluiu que só serviria se fosse o da sua avó.
............Fazendo um balanço de tudo, não conseguiu ver nada de significativo em sua vida. Já estava na quinta cerveja e não conseguia sentir sono, arrastou a camisa com os pés para trás do sofá, estava suado, o corpo pregando, sentiu-se mais sujo do que nunca. Dirigiu-se até o banheiro, colocou água morna até a borda, abriu o armário e selecionou seis frascos diferentes. Mergulhou na banheira com sapatos de couro e várias bolinhas coloridas nas mãos.
............Foi três dias depois, durante uma manhã ensolarada, que um médico discava insistentemente para dois números.
............- Dr. Miguel, com licença...
............­- Só entre se você tiver conseguido falar com um dos pacientes, você conseguiu? Conseguiu falar com o Frederico ou com o Paulo?
............- Não Dr. Miguel, é que...
............- Então saia Letícia, saia e só volte quando conseguir falar com eles.
............- Estão mortos.
............O médico parou imóvel com seu dedo indicador ainda apontando para a porta.
............- Isso mesmo Dr., os dois estão mortos. Frederico foi encontrado dentro da banheira de seu apartamento após ter ingerido uma overdose de pílulas.
............- E Paulo?
............- Ainda não se sabe, a mulher disse que aconteceu durante o sono, ela percebeu o corpo gelado durante a madrugada.
............- Letícia, quero todos os detalhes sobre isso, veja agora para onde encaminharam o corpo, quem é o legista responsável, tudo.
............A mulher fechou a porta, ele encostou-se na cadeira e o mundo girava ao seu redor. Segurou os laudos em suas mãos enquanto olhava novamente os resultados, agora corretos para os respectivos pacientes. Apressou-se em queimar os laudos impressos e enquanto fazia algumas alterações iniciais no sistema, pensou nos contatos certos para tudo ficar em ordem. Aliviou-se, ia conseguir, só tinha que agir rápido para que sua carreira não fosse prejudicada por uma troca de apenas dois diagnósticos.

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