quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Jantar a luz de velas - parte IV

(...)
............Um frio lhe percorreu o corpo, mas já não era sua lembrança, era um arrepio real que o trouxe de volta ao presente, a sua cozinha. Ele se levantou e resolveu começar a colocar as refeições nas devidas travessas. Começou a se sentir idiota por estar fazendo um jantar especial para uma pessoa que talvez não fosse ao menos notar aquilo tudo, há tempos em que na maioria das horas ela estava fora da realidade e isso o fez sentir com raiva. Lavou o rosto na torneira da pia, se acalmando, sabia que era o certo a se fazer, afinal era a data de aniversário do casamento deles e ele não poderia deixar passar isso em branco, por mais que toda situação atual fosse, digamos, delicada.
............Respirou fundo algumas vezes, aquela lembrança dos momentos estranhos que passou na casa de campo sempre o deixavam desnorteado. Ele nunca soube explicar o que aconteceu, sempre culpava sua consciência pesada e achava que foi isso que o fez imaginar coisas, hoje pensava se realmente foi o que aconteceu. Encostando-se na bancada, se transferiu aos poucos para aquela noite na cabana, a noite que ouviu a primeira vez o choro misterioso de um bebê inexistente.
............Era uma noite de verão quente, mas o arvoredo próximo lhe trazia agradáveis brisas frias. Já era de madrugada, ele dormiu lendo um livro em sua cama, com as janelas abertas, de repente se sobressaltou por um barulho vindo do andar superior, não era um barulho como os anteriores, era uma voz, tinha certeza de ter ouvido um choro de criança. Levantou e calçou os chinelos, levou o dedo ao interruptor e logo percebeu que estava sem luz, talvez uma queda breve, tateando as paredes pode ir até a um quartinho abaixo da escada que servia de despensa e conseguiu achar uma lanterna. Tentou acender a lanterna algumas vezes, estava falhando, quando enfim conseguiu firmar o facho de luz, sentiu algo batendo nos seus pés, era uma pequena bola colorida. Abaixou-se para pegar, a lanterna falhou, bateu novamente com ela na mão esquerda e voltou a funcionar, mas a bola não estava mais ali.
............Aquilo não o assustou, estava grogue de sono e não processou direito as informações. Após vasculhar a casa, e não achar nada, voltou para a cama. No outro dia forçou sua mente a tentar lembrar dos fatos, mas tudo vinha em flashs como se fosse um sonho e ele deduziu que talvez realmente tivesse sonhado. Três dias se passaram e tudo estava bem, continuou com sua vitrola e seu francês que agora já estava melhor, a tarde teria uma conferência on line com alguns acionistas e no momento estava preparando uma pauta a ser apresentada. Sentado no sofá, ajustava seu laptop quando, ao olhar pela porta lateral, viu na sombra da pereira um garoto. Ele vestia um macacão jeans, com uma blusa comprida listrada, deveria ter por volta de 2 ou 3 anos, brincava sentado com uma bola colorida.
............Ele achou que aquilo fosse impossível, já que tinha certeza que nas redondezas não havia nenhuma habitação ou acampamento, pelo menos não nos próximos 5 quilômetros. Dirigiu-se até a árvore, o garotinho notou sua presença, levantou e começou bater palmas, muito alegre e de forma levada começou a contornar a pereira. Ele, apesar de gelado, começou a correr e logo que deu a volta na árvore o que encontrou foi apenas a bola colorida, que dessa vez não sumiu. Segurou-a forte e apertou bem para ter certeza que aquilo era real, olhou em volta e não havia como o garoto ter se escondido tão depressa. Não se deixou abalar por isso, ele não sabia explicar, mas decidiu não dar tanta importância, voltou para seu laptop e sua conferência. Decidiu que aquela noite iria jantar fora.
............Voltou tarde e já um tanto embriagado pelo vinho, deitou-se no sofá mesmo. Um grande estrondo o fez quase cair, dirigiu-se a cozinha e viu as portas dos armários abertas e as vasilhas todas no chão, acendeu as luzes de todos os cômodos da casa, mas não havia nada, agarrou-se ao paletó e saiu em direção ao carro. Acordou com o sol forte no rosto e as chaves na mão, meio atordoado, lembrou-se que tentou dirigir, mas deve ter adormecido antes mesmo de conseguir dar partida. Um pouco amedrontado voltou para a casa, foi a cozinha, que estava simplesmente em ordem. Tomou uma demorada ducha quente, tentou manter o controle e achar uma explicação racional para aquilo tudo. Vestiu uma regata e desceu.
............Logo no meio da escada pode ver seu laptop aberto na bancada e janelas sucessivas abriam e minimizavam na tela, aproximou-se, logo as aberturas pararam deixando somente uma notícia em destaque e várias em seu rodapé, ele abriu uma a uma, eram todas notícias de sua esposa, a abertura da boutique, a inauguração de seu atelier, as festas, as viagens, a mais recente se tratava sobre a venda de sua marca e suas inexplicáveis alterações de humor. Sentiu, neste momento, algo sobre sua coxa, desceu o olhar e viu duas pequeninas mãos uma em cada perna, virou-se mas não havia nada.
............Aquele, definitivamente, era o momento de encerrar suas férias. Em menos de 15 minutos já estava com todas as bagagens no carro e se dirigindo para a cidade.
.........
(CONTINUA)

Nenhum comentário: