sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Jantar a luz de velas - parte V

(...)
............Dirigiu por horas sem fazer nenhuma parada, tinha pressa, para não dizer desespero. Chegou mais rápido do que esperava e apesar de cansado e faminto, ficou paralisado diante da porta. Já havia meses que não a via, aliás, já havia meses que ao menos não conversavam, e ele ficou ali tentando premeditar suas falas e ações, tentando imaginar como ela o receberia e como estaria, pensando principalmente no que aconteceu durante esse tempo e em como seria de agora para frente.
............Colocou a chave e surpreendeu por conseguir abrir, pensou que ela haveria de ter trocado a fechadura, enfim um bom sinal. Tirou seu casaco e o pendurou, deixou as malas no chão, andou pela casa que agora estava vazia e em silêncio. Notou a ausência dos vários retratos que antes estavam espalhados pelo aparador e paredes, percebeu o atelier fechado, teve um breve lampejo de memória sobre aquela noite em que encontrou quartos corpos nus e drogados em sua cama. Abriu as portas, um cheio rançoso invadiu suas narinas.
............Roupas rasgadas, araras vazias, cabides no chão, restos de comida e garrafas sem conteúdo estavam espalhadas sobre o sofá e o felpudo carpete rosa. Notou folhas amassadas jogadas em um canto e, na mesa, vários croquis com rabiscos disformes, a caixa de lápis só continha gizes da cor negra, notou o estilete que ela sempre usava para afinar as pontas, a lâmina estava suja por um material escuro e de cheiro relativamente forte. Desdobrou algumas folhas e tentou decifrar os desenhos, eram praticamente iguais, todos disformes e incoerentes, ao olhar bem visualizou um rosto desfigurado que parecia sentir dor. Ou não era nada disso, ele andava com a imaginação um tanto quanto susceptível.
............Continuou percorrendo o restante da casa, abriu a geladeira e notou que precisaria fazer compras, já que só havia leite, geléia de uva e iogurte de frutas e nos armários cereais e bolachas de doce. Passou pela sala, a TV estava desligada da tomada e, com exceção de poucas coisas, vários aparelhos eletrônicos também estavam fora de seus plugs. Subiu as escadas, foi a seu quarto, sentiu uma pontada de desprezo ao olhar para cama. O closet estava aberto e pode notar que todas as roupas eram brancas, percorreu a mão por diversas delas e todas eram assustadoramente alvas. Saiu e quando caminhou em direção ao corredor pode notar aquele quarto aberto, o antigo quarto do bebê.
............Quando ele lacrou o quarto após alguns meses do acidente, pensou que ela fosse novamente acabar dando um jeito de abri-lo, mas ela não o fez, então esqueceu do assunto, não achou que ela fosse ter uma recaída depois de tanto tempo. Notou que a porta foi aberta sem algum esforço, pois ela usou a chave original que ele havia trancado em seu cofre particular, cofre que ela não tinha idéia da existência, se perguntou como ela havia conseguido a chave.
............Não soube explicar porque, mas sentiu que era melhor entrar no quarto. Tudo estava diferente, a decoração ganhou um tom azul, com o tema de marinheiro, a cortina era listrada, toda azul e branco, havia vários barquinhos pintados na parede, brinquedos e ursinhos de pelúcia ocupavam prateleiras, passou pela poltrona e viu que no carpete ao lado do berço haviam bolas coloridas, olhou ao redor e só então pode perceber várias bolas coloridas, no carpete, embaixo do berço e dentro do pequeno baú. Saiu apressado do quarto e trancou a porta apressadamente.
............Ouviu um barulho vindo do banheiro, dirigiu-se até lá e encontrou sua esposa dentro da banheira, com o olhar perdido e vazio. Chamou-a, mas ela não respondeu, parecia em choque, a água já estava fria e sua pele estava enrugada e com as pontas dos dedos levemente arroxeadas, pegou em suas mãos e não pode deixar de notar uma cicatriz profunda no pulso, olhou na outra mão e havia uma cicatriz idêntica, lembrou-se da lâmina do estilete no atelier. Pegou uma toalha e a enrolou, no quarto a vestiu e deixou-a deitada na cama, desceu e preparou uma sopa instantânea que conseguiu achar na gaveta do armário.
............Subiu com a bandeja para o quarto e a encontrou exatamente na mesma posição que ele a havia deixado. Colocou a bandeja no seu colo e insistiu que ela comesse, como ela não teve reação, começou dar a sopa em sua boca, ela não tinha atitude para fazer algo, mas deixava-se conduzir. Deitou-a e colocou o cobertor sobre suas pernas, se levantou para sair, e então ouviu “Amor, não sei se vai gostar, mas pouco me importa, acho que estou grávida”. Olhou para trás e ela estava sentada e sorria com os olhos vidrados, ela falou exatamente como há vários anos antes quando lhe contou sobre a gravidez. “Tudo bem garotão, conversamos sobre isso amanhã”, aconchegou-se ao travesseiro e adormeceu no mesmo instante. Ele continuou parado olhando ela respirar pesado enquanto dormia.
............Se sentiu fora de sintonia, não entendia o que havia acontecido com ela, a geladeira vazia, o atelier destruído, o quarto do bebê reaberto, os pulsos e agora aquela fala do nada. Sentou-se na escada e chorou, compulsivamente e por vários minutos. Começou a procurar alguma pista que o ajudasse e foi na bancada do banheiro que encontrou vidros de remédios antidepressivos e antipsicóticos, abriu as gavetas e viu várias receitas, olhou o rodapé e verificou o nome e fone do médico, tomou a liberdade de ligar para o consultório. Logo descobriu que o médico era o psiquiatra de sua esposa e marcaram um jantar para o mesmo dia.
............Durante a conversa foi informado sobre praticamente tudo que aconteceu quando estava fora, o consumo de várias drogas e bebidas, as alterações constantes de humor, o declínio social, o afastamento da família e amigos, a venda da marca do atelier para pagar as dívidas, a depressão, a tentativa de suicídio e por fim, crises de pânico e as fugas da realidade. O médico informou que ela não chegou a ser diagnosticada como psicótica durante o tratamento, mas ele concluiu que as ilusões criadas por ela funcionavam como uma válvula de escape para todos os problemas emocionais, quando ele perguntou que tipo de ilusões eram essas, o psiquiatra disse que ela sempre contava sobre a presença de uma criança em seu apartamento.

(CONTINUA)

Nenhum comentário: